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Última avaliação

Reforma das pensões para "FMI ver" pode não ser aplicada

22 abr, 2014 • José Bastos

O economista Álvaro Santos de Almeida, antigo quadro do FMI, avisa que a instituição liderada por Christine Lagarde "vai pressionar" Portugal na recta final do programa da “troika” e refere que pode estar a aproximar-se uma situação política "potencialmente explosiva".

A reforma do sistema de pensões pode ser só para "FMI ver" e não ser, assim, aplicada. A tese é defendida pelo economista Álvaro Santos Almeida, em entrevista à Renascença, no dia em que arranca a última avaliação do resgate da "troika".

O ex-quadro do FMI, ex-presidente da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e presidente do agrupamento científico de Economia da Universidade do Porto diz que Portugal vai ser pressionado nesta recta final do programa e enfrenta uma "situação potencialmente explosiva", em termos políticos.

O que pode mudar na 12ª e última avaliação da “troika”? A pressão do FMI que está de saída irá abrandar?
A última avaliação é sempre um processo complicado. A “troika” sabe – e eu falo, sobretudo, do FMI – o FMI sabe que a partir do momento em que liberta a última tranche financeira deixa de ter poder negocial junto das autoridades locais. Donde, esta 12ª avaliação vai ser aproveitada pelo FMI para tentar obter a maior quantidade possível de compromissos, mas sabendo que passados três meses o Governo pode fazer coisas totalmente diferentes do que se comprometeu.
 
Haverá alguma flexibilidade do FMI ou a aprovação da última tranche já não amedronta ninguém?
Amedronta no sentido em que um falhanço na última revisão do programa seria dramático para o Governo e para o país. Representaria um desvio. Ao fim de 11 revisões bem sucedidas, falhar a última seria algo de extremamente negativo. Portanto, o FMI ainda tem algum poder de pressão antes da aprovação desta revisão. Por isso é que vai pressionar para os elementos chave da reforma sejam aprovados antes do fecho da 12ª revisão. Em particular a questão das pensões e o que falta fazer no mercado de trabalho.
 
Que cenário poderia precipitar o fracasso da 12ª avaliação?
Teria de haver um descontrolo político completo. Isto é: uma crise política muito forte. Mas tendo em conta o histórico deste Governo, a capacidade demonstrada para chegar a acordo em 11 revisões, ficaria extremamente surpreendido que agora surgisse uma matéria a impedir o sucesso na última revisão. Não antecipo nenhum problema de fundo, até porque o que o FMI vai poder exigir é a aprovação de legislação. Ou, pelo menos, a submissão ao Parlamento de legislação que o Governo sabe ter depois sempre hipótese de alterar. Há ainda a possibilidade do Tribunal Constitucional decidir em sentido contrário já depois da “troika” ter saído. Portanto, não antecipo qualquer problema de maior nesta 12ª revisão.

Nem a ausência da exigida reforma de fundo no sistema de pensões? O FMI diz que a reforma “é crítica”.
Há uma questão que o FMI refere - neste documento agora divulgado sobre a 11ª revisão - que é fundamental nisto tudo. É que o Governo aprovou as leis todas que era preciso aprovar e falta saber se as leis tiveram os resultados pretendidos. No caso da reforma das pensões pode acontecer a mesma coisa. O Governo certamente há-de aprovar uma reforma qualquer que o FMI vai aceitar enquanto cumprimento da condição imposta. Falta saber é se essa reforma a aprovar pelo Governo vai ser a que será aplicada devido aos problemas colocados pelo Tribunal Constitucional. Ou se será alterada em plena Assembleia da República. Uma vírgula na redacção final pode alterar o sentido da reforma.

A reforma das pensões a apresentar pode ser então para “FMI ver”?
Pode. Poderá ser uma reforma para FMI ver não necessariamente por vontade do Governo, mas porque o processo legislativo/constitucional pode, depois, introduzir alterações que retirem grande parte do impacto pretendido.

O chefe de missão do FMI diz que se vai debater a questão do salário mínimo, mas não esconde o cepticismo quando alerta para o desemprego de longa duração.
Das coisas que, nós economistas, sabemos sobre o salário mínimo é que o salário mínimo das duas uma: ou não tem efeito ou se tem algum é o de diminuir os níveis de emprego. No caso português isso está devidamente documentado. Qualquer aumento do salário mínimo irá ser negativo para a questão do emprego. Estando a taxa de desemprego nos níveis actuais é natural que o chefe de missão do FMI expresse alguma preocupação, porque poderá, pelo menos, reduzir a diminuição da taxa de desemprego que tem vindo a ser observada.

O FMI pede também consenso político para evitar futuras descidas de impostos. Com um ciclo eleitoral no horizonte como resistir às tentações do pós-troika numa questão que não parecer sequer ser consensual no próprio Governo?
Não nos esqueçamos que das poucas vezes em que houve acordo entre PS, PSD e CDS no âmbito desta legislatura foi exactamente para reduzir a taxa do IRC. Portanto, para uma redução de impostos. Nesse aspecto o consenso político até pode ser negativo. O problema da redução de impostos surge porque a consolidação fiscal ainda não está concluída - o FMI refere claramente no seu documento “não só não está terminada como ainda há muito por fazer” – e o grande risco que se corre com o aproximar de eleições é que haja a tentação de abrandar a austeridade. É uma preocupação que exprimi várias vezes ao longo dos últimos meses e que continuará a existir independentemente de haver acordo ou não, porque, como disse, pode haver acordo para reduzir impostos.

O FMI também se refere à necessidade de cortes no sector eléctrico. Não tem havido avanços?
É uma questão que aparece, provavelmente, desde o primeiro relatório. Já vamos em 11 ou em 12 por causa do memorando original. A questão é eternamente repetida o que significa que nada foi feito. Mais uma vez parece-me que estamos perante um caso de legislação que é aprovada e que acaba por não ter os efeitos desejados. As rendas excessivas continuam a existir. O FMI tem um trabalho muito interessante neste relatório comparando a evolução dos salários e dos lucros nos sectores transaccionáveis, ou seja aqueles que estão expostos á concorrência externa, e nos sectores não transaccionáveis, onde estão essas rendas excessivas. Há claramente um desequilíbrio enorme que resulta do facto de haver mercados protegidos que não estão expostos à concorrência que são os mercados internos, em particular, de electricidade e telecomunicações.

Na 12ª avaliação o financiamento da Autoridade da Concorrência também vai ser escrutinado. Em causa o regime harmonizado a aplicar a todos os reguladores. Como se compreende que não tenha havido avanços nestas entidades independentes tão decisivas para a economia?
É uma boa questão até porque a lei-quadro das entidades reguladoras já foi aprovada a meio do ano passado e estabelecia um prazo de 30 dias para adequar os estatutos. Isso ainda não aconteceu na maioria das entidades. Sobretudo é preciso saber se os estatutos estão a ser adequados no sentido desejado. Como dizia há pouco é perfeitamente possível que se tenha aprovado uma lei-quadro respeitando todos os princípios exigidos pela “troika”, porque a lei-quadro foi devidamente escrutinada, mas depois, na definição dos estatutos individuais, se retire muito do impacto da lei-quadro. Refiro, por exemplo, a independência financeira e operacional que a lei-quadro prevê, mas que pode ser eliminada nos estatutos. É por isso que o FMI faz essa referência à Autoridade da Concorrência, mas poderia fazer referência a outras autoridades reguladoras que não apenas a da concorrência.

O primeiro leilão de longo prazo de dívida pública após o resgate avança na quarta-feira. É o primeiro de Portugal sem rede de segurança. Será um bom indicador para o futuro ou esse barómetro fica condicionado por taxas de juro invulgarmente baixas?
As duas coisas estão ligadas. Naturalmente é porque as condições de mercado são, nesta altura, favoráveis com taxas em mínimos dos últimos anos que o Governo se pode dar ao luxo de correr o risco de fazer uma operação sem um sindicato bancário de tomada firme. Essas condições favoráveis fazem com que o risco efectivo não seja muito grande. Até porque se a Grécia conseguiu, há muito pouco tempo, colocar dívida pública no mercado não haverá qualquer problema em Portugal fazer o mesmo. A única dúvida é qual será a taxa, mas também não deverá andar longe dos mínimos recentes.

O efeito conjugado da saída da “troika”, ausência de pressão externa, episódios recentes de desorientação – taxa do sal e gorduras é um exemplo - e a proximidade de dois ciclos eleitorais acarretam riscos políticos maiores?
É certamente uma situação potencialmente explosiva. O único factor positivo nessa equação é o dos dois partidos da coligação concorrem juntos às eleições europeias. Pelo menos, as europeias não serão um campo de batalha. Passadas as eleições europeias começarão já a pensar nas eleições legislativas de 2015 e a probabilidade de haver uma crise séria no Governo - no limite a colocar em causa a própria continuidade do executivo – não é negligenciável. É uma possibilidade que haja divergências entre os partidos da coligação ao ponto de comprometer a continuidade do Governo, mas, diria, só depois das eleições europeias e, a surgirem, provavelmente durante Verão ou no final do Verão. A altura será quando começar a preparação do Orçamento do Estado para 2015. Aí sim, serão colocadas muitas das questões políticas que poderão ser a causa de divergências profundas entre os diversos membros do Governo.