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Entrevista

Bastonária dos advogados: "Caso Sócrates mostra fragilidades do sistema judicial"

01 jul, 2015 • Marina Pimentel (Renascença) e Ana Henriques (Público). Imagem: Joana Bourgard (Renascença)

Caso que envolve ex-PM mostra que "por vezes" se "prende para investigar" e que o segredo de justiça é violado para "branquear investigações criminais", diz Elina Fraga em entrevista à Renascença/"Público".

Bastonária dos advogados: "Caso Sócrates mostra fragilidades do sistema judicial"
O Ministério Público limita-se a abrir inquéritos às violações do segredo de Justiça, mas nunca tira consequências, acusa a bastonária da Ordem dos Advogados, Elina Fraga, em entrevista conjunta à Renascença e ao "Público". A bastonária diz compreender o "desespero" dos advogados de José Sócrates ao saberem pelos jornais de diligências de que deviam ter sido notificados pelo Ministério Público. Para Elina Fraga, abusa-se da prisão preventiva e, "por vezes", prende-se "para investigar".
O Ministério Público limita-se a abrir inquéritos às violações do segredo de Justiça, mas nunca tira consequências, acusa a bastonária da Ordem dos Advogados, Elina Fraga, em entrevista conjunta à Renascença e ao "Público".

A bastonária diz compreender o "desespero" dos advogados de José Sócrates ao saberem pelos jornais de diligências de que deviam ter sido notificados pelo Ministério Público.

Para Elina Fraga, abusa-se da prisão preventiva e, "por vezes", prende-se "para investigar". "A percepção que o cidadão tem é que se anda à procura, de forma quase esquizofrénica, da prática de um ou vários crimes – e não de que há uma linha condutora da investigação criminal."

Os advogados de Sócrates têm-se queixado de abuso de poder e de desonestidade por parte dos procuradores e juízes. Mas os tribunais superiores têm confirmado as suas decisões. Quem tem razão?
Da última vez que disse que a investigação criminal viola o segredo de justiça [em declarações à Renascença, em Janeiro] foi-me aberto um processo-crime, que já foi arquivado. O que me preocupa é sobretudo que não sejam violadas as garantias de defesa do arguido, seja José Sócrates ou um anónimo. Depois, que não haja um abuso da prisão preventiva – que seja aplicada apenas nas situações em que tem cabimento na lei e sempre em 'ultima ratio' [último recurso], porque é a privação da liberdade.

A violação do segredo de justiça é um flagelo e evidenciou-se neste como noutros casos mediáticos. Em todo o caso, censuro mais – mesmo com a probabilidade de me ser aberto novo processo-crime – a investigação criminal, à qual cabe proteger o segredo de justiça. Todos os dias continuamos a ler relatos mais ou menos degradantes, como aconteceu muito recentemente com a transcrição integral do interrogatório deste arguido [pela revista "Sábado"].

Como vê isso?
Com profunda indignação. A Procuradoria-Geral da República deu nota de que tinha aberto mais um inquérito. É preciso dar um sinal claro à sociedade de que este é um crime punível por lei, não só com a abertura de inquéritos, mas também com a aceleração das diligências investigatórias nesses processos, para se começar a apresentar resultados. De que adianta dizer que há 20 ou 30 processos-crime contra determinado órgão de comunicação se eles não passam do inquérito? Se é que são abertos inquéritos, não sei se são… Tem de haver julgamentos e condenações. O mais gravoso é o Ministério Público invocar o segredo de justiça e depois ser ele próprio muitas vezes a violá-lo.

É uma dedução sua.
Na fase do processo em que ainda não foram constituídos advogados e apenas têm contacto com ele o Ministério Público e os órgãos de polícia criminal há-de ser desse lado, da acusação, que se viola o segredo de justiça. Isto é uma verdade insofismável e sucedeu no caso de José Sócrates. O que é censurável é que se ficcione a existência de um segredo de justiça e que essa ficção ainda por cima coarcte os direitos de defesa, obrigada ao silêncio imposto por lei.

Compreendo o desespero que sentem muitas vezes os advogados quando, de forma sistemática, ao invés de serem notificados dos despachos judiciais ou das sentenças nos seus escritórios, abrem uma página de jornal e vêem lá plasmado o conteúdo desses despachos. Vêem os processos esmiuçados nos jornais sem que seja assacada responsabilidade a quem quer que seja. Parece que o segredo de justiça se viola sozinho, o que é uma coisa fantástica! Por obra e graça do Espírito Santo aparecem transcritos nas páginas dos jornais os interrogatórios...

E isto faz-se com comunicados sistemáticos e absolutamente inócuos da Procuradoria-Geral da República a dizer que vai abrir inquéritos. Se o Estado não tem capacidade para proteger o segredo de justiça, acabe-se com ele. Não podemos é ter a comunicação social a branquear investigações criminais.

O advogado do ex-primeiro-ministro, João Araújo, foi alvo de processos disciplinares na Ordem dos Advogados por ter falado do processo em causa, por um lado, e por ter insultado uma jornalista, por outro…
Os órgãos de jurisdição disciplinar são independentes da bastonária. Impende sobre todos os advogados o dever de urbanidade, independentemente de quem seja o seu interlocutor. Os órgãos disciplinares avaliarão se houve algum excesso de linguagem ou mesmo a prática de uma infracção disciplinar. Hoje é preciso enquadrar a conduta de todos os operadores judiciários à luz de uma justiça acompanhada ao minuto pela comunicação social, em que os excessos muitas vezes são cometidos por todos. O insulto nunca deve ter outro insulto como resposta.

Indigna-a também que alguém possa ficar detido preventivamente um ano, como poderá suceder com Sócrates?
A prisão preventiva deve ser aplicada aos arguidos em situações extremas. O que por vezes acontece é que se prende para investigar.

Mas a lei não o prevê?
Não. A lei permite que se investigue. Agora, para haver prisão, para além de todos os outros requisitos (como o perigo de fuga, de destruição de prova ou de perturbação do inquérito), tem de haver também fortes indícios da prática de crime. A percepção que o cidadão tem é que se anda à procura, de forma quase esquizofrénica, da prática de um ou vários crimes – e não de que há uma linha condutora da investigação criminal.

O que é importante retirar do caso do engenheiro Sócrates são as fragilidades do sistema judicial: este processo pode servir para fazer um balanço sereno sobre aquilo que queremos para a justiça e para a investigação criminal. E quais são os erros que não gostaríamos de ver cometidos.

Depois da prisão do ex-primeiro-ministro, a justiça portuguesa ficará igual?
Aquilo que ficou exposto como gravemente lesivo, não só da investigação criminal como da honra e do bom nome de alguém privado de liberdade, deve incutir alguma reflexão. É necessário revisitar o Código de Processo Penal, porque as formulações que existem não protegem suficientemente os arguidos, e assumir se queremos ou não segredo de justiça em Portugal. Se é para ser violado diariamente, acabe-se com ele, de modo a haver uma verdadeira igualdade de armas entre defesa e acusação.