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Rui Machete. Relações entre Portugal e Angola estão em "ponto intermédio"

22 out, 2014

Em entrevista à Renascença, ministro dos Negócios Estrangeiros deixa duras críticas à actuação do Tribunal Constitucional, que apelida de "francamente errada".

As relações diplomáticas entre Portugal e Angola estão num "ponto intermédio", afirma o ministro dos Negócios Estrangeiros em entrevista ao programa "Terça à Noite" da Renascença. Rui Machete admite. no entanto, que "se evita tratar de alguns problemas" que "geraram irritações" no passado recente.

No plano interno, o chefe da diplomacia portuguesa deixa duras críticas o Tribunal Constitucional, que chumbou normas de todos os orçamentos apresentados pelo actual Governo. Machete apelida de "francamente errada" a actuação dos juízes, que não têm deixado espaço de manobra "para mudar as coisas". 

A questão económica tem vindo a sobrepor-se, nomeadamente nos países europeus, ao respeito pelos direitos humanos?
Isso tem havido sempre. Não é apenas os europeus. A "realpolitik", em muitos aspectos, não é apenas económica, a "realpolitik" é mesmo política. Por exemplo, o problema da Rússia na Ucrânia não creio que possa considerar-se um problema fundamentalmente económico, é, basicamente, um problema de estratégia, da afirmação do poder e de uma questão de defesa dos seus interesses, considerando que é uma área essencial para a segurança da Rússia.

Mas a forma como a União Europeia lidou com essa questão foi sempre uma forma que teve em conta o poder económico da Rússia.
Não. Neste caso, o que aconteceu foi que a União Europeia, na sua política, talvez tenha negligenciado considerar que a Rússia se sente cercada, bem ou mal, não interessa, e ponderou que se tratava, fundamentalmente, de uma questão de concorrência,  oferecendo à Ucrânia um esquema de mercado capitalista, concorrencial e eficaz e que podia permitir o seu enriquecimento, contrariamente àquilo que a Rússia podia oferecer com uma associação aduaneira e que não tem as mesmas potencialidades. Esta visão, em que predominou a economia, mas não no sentido em que estava a dizer, foi alguma coisa que deixou escapar o interesse à segurança que a Rússia pretende ter. Ultimamente, tem-se mantido uma posição que eu considero correcta, que é manter os canais diplomáticos abertos com a Rússia e ver se é possível encontrar uma solução política que tenha em conta a integridade e soberania, que são aspectos importantes a preservar na Ucrânia, mas também tenha muito em conta a liberdade, a dignidade da pessoa humana e um tipo de organização social em que a autonomia seja reconhecida às pessoas.

A China enfrenta um problema com a questão de Hong Kong, onde os manifestantes pedem um direito básico.
É verdade. É um problema complicado, complexo, como sempre, porque a China tem feito progressos muito significativos do ponto de vista económico. Mas o desenvolvimento económico não é tudo e o regime chinês tem alguns problemas delicados do ponto de vista da sua passagem para a democracia, visto que era um sistema que perante a massa enorme de habitantes, o problema do aumento dos seus direitos é muito complexo e muito importante e nós devemos ajudar a China, mas devemos ajudar a China percebendo o tipo de problemas que tem e tentando encontrar soluções que permitam melhorar a situação, evitando o sacrifício de vidas humanas.

Como é que isso se faz?
Não é fácil, mas é um problema extremamente sério e, no fundo, "mutatis mutandis", é o problema que acontece em Angola. Angola é uma sociedade que tem evoluído, depois da guerra civil tem melhorado significativamente, mas não dá um salto imediato para os direitos políticos, as coisas levam algum tempo. Nós temos de compreender que os resultados podem ser alcançados ajudando por dentro o regime a evoluir e não tanto criticando externamente e sem ter em consideração os problemas complexos que eles têm que enfrentar. Mas há muitos Estados em que a pena de morte é um problema muito sério, viola a vida, mas temos que reconhecer que há países que são democracias, como os Estados Unidos, em que em alguns estados pratica-se a pena de morte, por razões das mais diversas e que do ponto de vista histórico podem ter alguma explicação, mas para quem preserve, como nós portugueses preservamos, os direitos fundamentais, não podemos considerar que seja uma solução aceitável. Isso leva o seu tempo. É mais complicado e é mais útil, a meu ver, fazer uma crítica permitindo uma mudança por dentro do que uma crítica de fora, altivamente, de condenação, porque essa critica de condenação não entende as razões.

Acha que quando se fala de Angola em Portugal há esse tipo de crítica de quem não tenta resolver as coisas por dentro?
Depende muito de quem faça críticas. Não creio que possa haver uma posição dos portugueses e de Portugal.

As nossas relações diplomáticas com Angola estão num ponto alto ou baixo?
Nós não estamos num ponto alto, mas também não estamos num ponto baixo. Estamos num ponto intermédio, em que as relações se passam normalmente, se evita tratar de alguns problemas - não estou a pensar nos problemas de direitos humanos, não é isso -, de problemas que geraram irritações nas relações, porque as centenas de milhares de portugueses que estão em Angola trabalham normalmente, em condições perfeitamente aceitáveis de liberdade económica, liberdade empresarial, fazem a sua vida e também os angolanos que aqui vivem. Há relações boas, não se tem feito cimeiras, mas isso não tem sido uma opção.

Continua sem estar prevista uma cimeira?  
Vai-se preparando a pouco e pouco. Não está prevista uma data, mas estão previstas as fases intermédias que hão-de conduzir à cimeira mas, neste momento, fazer ou não fazer uma cimeira não tem grande significado do ponto de vista do funcionamento real, do dia-a-dia, das relações e da cooperação que é preciso entre os Estados.

Os problemas recentes com o Banco Espírito Santo (BES), que tinha um banco em Angola, colocaram pedras na engrenagem das relações com Angola? Houve complicações?
Eu diria que tem havido cooperação entre o Banco de Portugal e o Banco Central Angolano. É evidente que são problemas que têm de ser resolvidos e não vêm facilitar a vida, mas não acrescentaram nenhuma irritação ou nenhum conflito particular. Quer o banco central português quer o banco central angolano perceberam que havia que intervir e encontrar soluções. Elas, aliás, ainda não estão inteiramente resolvidas, tanto quanto sei, mas não é um aspecto particular de dificuldades entre os dois países. São dificuldades dos dois países.

Empresas portuguesas importantes têm passado para mãos angolanas e chinesas. Isso é uma questão que o preocupa?
Preocupa-me a situação de termos sido forçados a realizar vendas que se traduzem não tanto em investimentos, mas em compras estrangeiras. Se fossem investimentos, acha que deveríamos estar inteiramente abertos a isso. Esse ponto não é positivo porque denota uma situação de dificuldades económico-financeiras que estão melhores, mas que estão ainda longe de ser inteiramente resolvidas. A crise ainda necessita de algumas medidas de austeridade. Isto é para dizer que esse problema não se reduz a pior serem os chineses ou outras nacionalidades. O capital chinês, como o de outros países, é bem-vindo, mas preferiríamos que fossem investimentos para coisas verdadeiramente novas e para…

Para comprar as jóias que temos?   
Essa visão das jóias da coroa não é muito uma teoria económica, é muito sentimental. Mas tenho pena, a mim custa-me mais, apesar de tudo, ver a situação da PT do que certas aquisições de empresas, que continuam a ser empresas prósperas por parte de entidades sejam elas chinesas ou de outra nacionalidade.

A verdade é que a PT, em mãos portuguesas, não tomou as melhores decisões.
Pois não, infelizmente. Para dar um exemplo. Se tomar em conta a indústria eléctrica em Portugal, é mais importante, embora fosse do ponto de vista do montante envolvido menor, que a REN, a concessionária que gere a rede eléctrica nacional, esteja em mãos portuguesas, do que a EDP, porque a rede eléctrica é o motor, é o cérebro e permite gerir a rede. Há aqui problemas que não têm a ver só com a quantidade ou com a importância da capacidade de lucro das empresas, tem a ver com certos aspectos do funcionamento e nós temos que estar atentos e ter uma política de regulação correcta para evitar os abusos e para evitar que haja os malefícios que podem existir pelo facto de serem companhias que já não são portuguesas.

Essa regulação está acautelada? Era um dos graves problemas que a troika detectou quando chegou a Portugal.
A regulação melhorou, em alguns aspectos. No ponto de vista bancário, vamos ver, mas noutros pontos de vista melhorou, mas ainda há um largo caminho a percorrer. Isso é indubitável.

O que é que aconteceu à diplomacia económica portuguesa?
Eu acho que na diplomacia económica é preciso distinguir dois aspectos. Em primeiro lugar, há uma diplomacia económica que pertence sempre ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, que é a diplomacia de estruturar juridicamente as bases da economia portuguesa no que diz respeito às suas relações com o estrangeiro. Estou a falar, por exemplo, nos acordos comerciais, nos acordos que previnem a dupla tributação e isso é missão transversal do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Mas que sempre existiu.
Isso é que é a diplomacia económica mais importante. Quando se discute o TTIP [Transatlantic Trade and Investment Partnership] com os Estados Unidos por parte da União Europeia e se analisa as vantagens e inconvenientes para isso, é um aspecto de diplomacia económica importante. Outro aspecto da diplomacia económica, que também é importante, é o problema da conquista dos mercados, da obtenção de um aumento das exportações, de negócios de investimento em Portugal considerados sobretudo em termos pontuais, em termos de negócios concretos. Aí, optou-se por uma solução que é de ter a AICEP [Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal]. Embora o Ministério dos Negócios Estrangeiros tenha, juntamente com o Ministério da Economia, uma tutela no AICEP, ela é tutelada pelo vice-primeiro-ministro [Paulo Portas], mas é uma solução que, claramente, resultado do Governo de coligação e que procura funcionar bem. Mais tarde, quando houver outras soluções políticas...

É uma solução em que não faz muita fé?
É uma solução que tem funcionado razoavelmente bem, mas que num ponto de vista estrutural o normal é haver uma política económica traçada pelo Ministério da Economia e, particularmente, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros na parte comercial externa.

Mas isso numa solução em que não haja um Governo de coligação?
Ou que a coligação se estruture de maneira diferente, mas neste momento ela tem funcionado bem graças ao entendimento das pessoas. De outra maneira, haveria certamente dificuldades. 

Haveria problemas e sobreposição de funções?
É, mas como lhe digo isso não se tem registado porque as pessoas percebem que, civilizadamente, é preciso encontrar formas de trabalhar de uma maneira harmoniosa e isso tem acontecido.

Portugal já conclui o programa da troika, mas ela regressa ainda este mês verificar as contas.
Cessou a vigência do acordo de entendimento, isso é um facto. Isso são os aspectos em que os credores procuram assegurar uma informação e acautelar os seus créditos, isso é normal, mas já não é a situação de relativa dependência que havia anteriormente, portanto, dá-nos um bocadinho mais de liberdade.

No entanto, não foi a liberdade suficiente para que neste Orçamento pudéssemos ter margem de manobra.
A troika, nesse aspecto, não influenciou nada. A realidade dos factos significa que nós precisamos de produzir mais, exportar mais, ter investimento estrangeiro e de não aumentar a nossa dívida externa e de permitir que o Estado satisfaça a dívida financeira que tem, e, portanto, isso não tem a ver directamente com o problema da troika, tem a ver com a situação que tínhamos, com os meios a que recorremos e que, a meu ver, eram os únicos possíveis para evitar uma bancarrota. A nossa margem de manobra, queiramos ou não, é muito estreita. Temos de a aproveitar, a situação tem vindo a melhorar lentamente. Agora, não vale a pena ter ilusões: qualquer que seja o Governo, nós não podemos, se tivermos juízo, viver acima das nossas possibilidades, se não tivermos juízo voltamos a uma situação como aquela que estava no passado e depois ver-se-á que as promessas ilusórias que são feitas eram realmente ilusórias.

Não há um caminho alternativo?
São completamente ilusórias as alternativas de pensar que basta dizer: "vamos desenvolver a economia, vamos pagar melhor, vamos fazer menos austeridade e mais desenvolvimento", para que isso se realize. Não existem condições económicas para realizar saltos muito bruscos. Se tivermos juízo e isso pode ser feito por várias composições governativas, há possibilidades de melhorar a situação económica, o próximo ano ser melhor do que este ano, que já foi melhor do que o ano passado, o outro ano será melhor e vamos avançando progressivamente e, ao fim de quatro ou cinco anos, teremos uma situação, desde que não haja convulsões complicadas na economia mundial.

É possível ir mais longe sem um entendimento com o PS em questões como pensões ou impostos?
Há duas coisas diferentes, embora possam ter alguma interligação. Uma que tem sido muito criticada e, a meu ver, com razão, é a orientação que o Tribunal Constitucional tem seguido, que me parece francamente errada, em geral - há um ou outro ponto em que tem razão -, porque parte dos princípios consignados na Constituição para daí fazer decorrências em relação a direitos. Entre os princípios e os direitos há uma diferença muito grande e se os tribunais constitucionais não tiverem aquilo que se chama uma autocontenção, dá asneira, que é aquilo que aconteceu aqui. Na prática, o Tribunal tem invadido - não sei se conscientemente - a esfera de competência do legislador e isso torna as coisas muito difíceis e a margem de manobra muito difícil. Também é verdade que, aqui ou além, o Tribunal Constitucional não foi inteiramente compreendido, mas isso é uma posição crítica que eu tenho. A outra questão é a do espaço de manobra que se tem para mudar as coisas e que é altamente cerceada por esta política do Tribunal Constitucional. Nesse capítulo, nós em grandes traços temos de diminuir a despesa do Estado, isso é fundamental, a despesa do Estado na sua diminuição envolve sacrifícios, isso é inevitável, que podem ser minimizados fortemente se aumentarmos as exportações, o que significa aumento da produtividade, conquista de mercados, uma política fiscal correcta e boa atracção de investimento.