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Entrevista

D. Manuel Clemente. "Complexidade da realidade humana tem de ser atendida"

03 out, 2014 • Filipe d'Avillez e Joana Bourgard (vídeo)

Há um debate em curso – devem as pessoas em uniões irregulares ter acesso aos sacramentos? – e que deve entrar no sínodo da família. D. Manuel Clemente, o representante da Igreja portuguesa no sínodo, coloca-se "a meio campo".

D. Manuel Clemente. "Complexidade da realidade humana tem de ser atendida"
Devem as pessoas em uniões irregulares ter acesso aos sacramentos? O debate deve entrar no sínodo da família, que arranca no domingo. O Patriarca de Lisboa coloca-se "a meio campo".
A Conferência Episcopal Portuguesa faz-se representar neste sínodo por D. Manuel Clemente. À Renascença, o Patriarca de Lisboa revela aquilo que irá dizer na sua intervenção e comenta a eventual facilitação dos processos de nulidade. D. Manuel distancia-se da polémica entre os cardeais a favor e contra a admissão de pessoas em uniões irregulares aos sacramentos, mas explica a fundamentação da posição da Igreja.

O Papa tem insistido muito na ideia da colegialidade dos bispos e assistimos a uma consulta prévia muito mais alargada do que é normal. Podemos esperar que este sínodo tenha mais peso que os outros?
Necessariamente, porque envolveu muito mais gente do que é normal, embora não seja exclusivo deste sínodo fazer-se uma consulta prévia acerca do tema do sínodo. Desta vez envolveu tanta gente, das mais diversas instâncias e grupos, que certamente a carga é maior e portanto a responsabilidade é outra porque temos de responder a mais pessoas que nos responderam a nós.

Normalmente nos sínodos há um documento final e depois o Papa faz uma exortação apostólica pós-sinodal, mas pode, se quiser, fazer tábua rasa das conclusões do sínodo. Neste caso ficará talvez mais preso às conclusões?
Isso parece-me líquido, sim, embora ele seja sempre livre para escrever ou não escrever um documento pós-sinodal. Mas com certeza que se pede a opinião e consulta tanta gente é para levar a sério, isso ele fará certamente.

Em Portugal é obrigatório fazer um curso de preparação para o matrimónio antes de casar pela Igreja. Considera que se deve reforçar a exigência destes cursos?
Quando não se verificam os requisitos que a Igreja pensa e propõe acerca do matrimónio, depois vai-se verificar que o matrimónio não existiu, portanto é bom que se apresentem de antemão. Aquelas características fundamentais do matrimónio cristão, de ser uno, ser indissolúvel e fecundo, porque aberto à reprodução, ou outras formas de fecundidade no caso de não poderem ter filhos.

Mas estas três notas do casamento e da proposta sacramental devem ser esclarecidas, porque não são aquelas que a sociedade e a cultura envolventes geralmente transmitem. Pelo contrário: ou não se casam sequer ou admitem que à primeira dificuldade, ou à segunda ou à terceira, cada um vai para o seu lado.

As pessoas têm de saber o que vão dizer. Quando a Igreja diz que haja uma preparação para o matrimónio é sobretudo nesse sentido, que as pessoas esclareçam acerca daquilo a que livremente se oferecem para depois não haver enganos.

Mas acha que deve haver mais exigência do que actualmente, no caso português?
Exigência é uma maneira de dizer, mas eu prefiro dizer clareza. Saber para o que vêm, o que estão a dizer. É preciso, como agora se diz, assumir, fazer seu o que é a proposta da Igreja.

Isto levanta a questão da nulidade. Parece haver algum consenso à volta de que a agilização dos processos de nulidade pode ser um caminho.
Por um lado sim, ou seja, que as pessoas que em consciência se convencem que o casamento não foi verdadeiro – por isto ou por aquilo, da sua parte, ou da outra parte, ou das duas partes – que o apresentem à Igreja e que a resposta seja uma resposta em tempo oportuno.

Agora, não me parece que seja o mais importante agilizar. O mais importante é ter a consciência, e é nesse sentido que me pronunciarei no sínodo, da complexidade da realidade humana. Que hoje efectivamente nos aparece mais complexa do que porventura em épocas em que as coisas estavam mais estabilizadas, até culturalmente estabilizadas para cada um. Nascia-se homem, nascia-se mulher, crescia-se, casava-se, a vida era assim, tinha-se filhos e a vida passava.

Hoje não é assim. E efectivamente cada pessoa é sujeita a tantas informações e contra-informações, a tanta contradição ambiental, que formar uma mentalidade acerca da família, do matrimónio, acerca de si próprio, é hoje muito mais complexo. É essa complexidade que tem de ser atendida.

Aliás, hoje tudo isso tem um lugar muito maior na consideração do juízo da Igreja do que se teve em outros tempos, e é normal.

Portanto, a própria consideração do ser humano no seu devir histórico, nos seus condicionamentos, no pouco e pouco da sua própria realização pessoal e conjunta, creio que é fundamental para se falar da verdade do matrimónio, que também é a verdade do sujeito humano, que é como é e nem sempre é como deve ser.

Tem havido um debate público, até entre cardeais e bispos, sobre o acesso das pessoas em uniões irregulares à comunhão, com uma proposta do Cardeal Kasper, que foi pública, e uma resposta, encabeçada pelo Cardeal Müller mas com o apoio de outros. Coloca-se nalgum destes campos?
Coloco-me a meio campo. Irei ao sínodo ouvir com muita atenção o que disserem de ambos os campos, porque acredito que as pessoas ao pronunciarem-se acerca de um tema tão complexo e tão grave, o fazem com a melhor das intenções e a melhor vontade para elucidar a questão.

A realidade é poliédrica, portanto, quanto mais perspectivações se tiver, deste ou daquele lado, por gente tão responsável e com tão boa vontade, melhor será para elucidar o assunto. E é nessa posição que me ponho: como aprendiz na matéria.

Por que é que a Igreja recusa os sacramentos a quem se encontra nessas situações?
Tem a ver com a globalidade da vida sacramental. Os sacramentos estão formulados em sete, mas esses sete sacramentos são momentos de uma realidade sacramental única.

Não podemos olhar um momento sacramental fora do conjunto. A Eucaristia é o sacramento central, é o sacramento em que nos alimentamos do próprio Cristo para aprofundar essa comunhão com Ele e nele com Deus, Pai, e com os outros.

Nesta relação com os outros, no caso do sacramento do matrimónio, os “outros” são aqueles esposos, que sacramentalmente se uniram, pela graça do mesmo Jesus Cristo para se amarem, diz São Paulo, como Cristo ama a Igreja e se entrega por ela. Se há uma ruptura grave aqui há uma ruptura sacramental no seu todo. Portanto, sem ela se curar aqui, nesta ruptura do um com o outro, como é que se vai representar na Eucaristia, que significa a comunhão completa com Deus e com os outros em Jesus Cristo?

Há aqui uma diferença que é preciso sanar. Comungar não é algo que eu faço porque gosto ou que desejo. Implica uma comunhão com Cristo, significada na comunhão que tenho com os outros, e no caso do matrimónio cristão que o cônjuge tem com a sua esposa ou com o seu esposo.

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