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"Comissão tem que voltar a ser o piloto da Europa"

25 jul, 2014 • Francisco Sarsfield Cabral e José Pedro Frazão

Pascal Lamy, ex-chefe de gabinete de Jacques Delors e antigo director-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), é o entrevistado desta semana do programa Fora da Caixa.

"Comissão tem que voltar a ser o piloto da Europa"
Presidente honorário da Fundação Notre Europe, Pascal Lamy fala com a autoridade de quem foi chefe de gabinete de Jacques Delors. De passagem por Lisboa para uma conferência na Fundação Gulbenkian, o francês que liderou a Organização Mundial do Comércio (OMC) aponta caminhos para a Europa no tempo da globalização, numa entrevista ao programa “Fora da Caixa” da Renascença.
Presidente honorário da Fundação Notre Europe, Pascal Lamy fala com a autoridade de quem foi chefe de gabinete de Jacques Delors. De passagem por Lisboa para uma conferência na Fundação Gulbenkian, o francês que liderou a Organização Mundial do Comércio (OMC) aponta caminhos para a Europa no tempo da globalização, numa entrevista ao programa “Fora da Caixa” da Renascença.

Como relaciona a Europa pós-eleições com os desafios da Europa na globalização?
Penso que o desafio a longo prazo da Europa é “civilizar a globalização”. A globalização está aí e aí estará por muitos anos. É uma enorme transformação que pode trazer coisas muito boas, nomeadamente a redução da pobreza, e muito más, como o aumento muito significativo das desigualdades. Essa é a grande questão do nosso tempo. A Europa é o lugar deste planeta onde o equilíbrio entre a liberdade individual e o sistema de solidariedade está no melhor caminho para lidar com a globalização.

Este é o melhor caminho para prevenir o desaparecimento da política ou a subordinação da política à economia?
Nenhum dos nossos países estará individualmente neste jogo. Apenas colectivamente poderemos entrar nele e é por isso que continuar a construir a Europa é tão importante, o que carece de apoio da opinião pública. E sabemos que em tempos recentes, bem antes da actual crise económica, tivemos um problema de "desafeição" da opinião pública em relação à integração europeia. Houve uma redução lenta desse apoio, o que é um problema, porque vivemos em democracias.

A posição da opinião pública é assim um factor importante nesta discussão?
O que aconteceu agora, em que, pela primeira vez, as eleições europeias foram sobre a distribuição do poder - a exemplo do que acontece nas eleições nacionais - pode ter dado origem a uma nova fase onde começámos a construir um novo espaço público. Nas próximas eleições europeias em cinco, dez ou 15 anos, as pessoas saberão que votam e decidem sobre quem será o próximo presidente da Comissão Europeia. Isso é novo e é bom.

A falta de democracia na Europa comunitária é uma das razões principais para este "desafecto" ou há outras, como o fim das guerras?
Não concordo com a ideia de que existe falta de democracia. As instituições e a integração europeias foram construídas com base num modelo democrático. Não é uma questão de instituições mas da forma como as pessoas se relacionam com este espaço político. É verdade que até este momento a maioria das pessoas que votou nas eleições europeias fê-lo de acordo com uma atitude nacional. Temos que justapor o sistema europeu como se votássemos para eleições locais, regionais ou nacionais.

E nesse sentido há que fazer alguma reforma institucional na União Europeia?
O sistema que temos é muito complexo. Não penso que será mudado nos tempos mais próximos. É só uma questão de termos um comportamento diferente das mesmas instituições. Temos que recriar um cenário junto dos cidadãos europeus em que que quem-decide-o-quê fica claro. Precisamos que a Comissão conduza, que assegure que há uma maioria na "asa direita" (Conselho Europeu) e na "asa esquerda" (Parlamento Europeu) de um "avião" cujo piloto coloca a voar por ter o apoio de ambas as "asas". De uma forma grosseira, é assim que a maioria dos sistemas políticos funciona na Europa, com excepção do meu país (França).
 
A questão é que o "piloto" neste momento é o Conselho Europeu e, provavelmente, vive em Berlim.
Essa é uma percepção. Mais uma vez, é a vez da Comissão se voltar a assumir como o "piloto".

Mas Delors tinha o apoio de dois grandes líderes, Mitterrand e Kohl. Neste momento, vemos que o presidente da Comissão precisa de apoio do Conselho.
É verdade. Em primeiro lugar, liderar é hoje mais difícil do que há 20/30 anos. Em segundo lugar, é verdade que Delors teve o apoio do Chanceler alemão e do Presidente francês. Mas isso não aconteceu por um decreto de Deus. Ele trabalhou para isso, criou a situação. Certificou-se que eram próximos em momentos em que tinham de confiar para ser tomada uma decisão. O equilíbrio franco-alemão não é hoje o que foi há 20/30 anos, porque o comportamento da economia francesa deteriorou-se. Não podemos comparar mas não estou convencido, por convicção ideológica, de que a Europa não precise de uma comissão que assuma as suas responsabilidades, que aponte o caminho aos lideres nacionais do Conselho e ao Parlamento Europeu para que seja ou não seguido, concorde-se ou não.

O que é preciso fazer na zona euro? Que reformas?
Penso que é já corriqueiro dizer que devemos integrar mais a zona euro do que calendarizámos em Maastricht. Esta crise ensinou-nos que temos uma integração monetária muito forte mas temos um lado fraco relacionado com a convergência fiscal e económica. Por isso, provavelmente, temos que manter a integração, como fizemos no pacto orçamental e na união bancária. Teremos de providenciar mais disciplina e solidariedade dentro da zona euro. Não podemos ter a segunda sem a primeira e vice-versa. É um pouco o que Delors fez quando anunciou o mercado interno a par do aumento de transferências internas pelos fundos estruturais.

É preciso dar mais poder ao Banco Central Europeu?
O BCE já é uma instituição federal a quem já se decidiu dar autoridade prudencial no sistema bancário. É mais uma questão de implementação do que de criação.

Falando de comércio internacional, face à sua enorme experiência, receia alguma forma de proteccionismo nos próximos anos?
Não. Em primeiro lugar, temos regras fortes ao nível da Organização Mundial do Comércio que estão razoavelmente em vigor. Em segundo lugar, essa é uma questão estrutural. Num momento em que a produção de bens e serviços se começa a "multilocalizar" - um exemplo: o seu carro é feito já em 15 países diferentes - o proteccionismo deixa de fazer qualquer sentido. A incorporação de importações no que se exporta aumenta tanto que disparar contra as importações não faz sentido. E há algo ainda mais importante que a disciplina: o bom-senso. A tecnologia está a matar o proteccionismo e o mercantilismo em simultâneo.

A parceria entre os Estados Unidos e a Europa vai mesmo para a frente e com eficiência?
Vamos ver. Penso que faz sentido tentar remover obstáculos ao comércio, mas temos que ter em conta que eles já não são o que eram. Antigamente, e eu sou desse tempo, esses obstáculos serviam para proteger o produtor da concorrência estrangeira. Isso está a desaparecer e o que faz agora sentido não é a protecção, mas a precaução. São os padrões de regulamentos que protegem os consumidores, os animais, as plantas, o ambiente. A administração desta precaução difere de país para país. Se eu produzo carros gostaria que os testes de colisão na América e na Europa fossem similares. Neste momento tenho que produzir automóveis que sirvam para os testes de um lado e do outro. Isto não é eficiente. Faz sentido esta parceria, mas é uma negociação comercial diferente da clássica como a faziam Creta e o Egipto.

Esta parceria pode abrir caminho a um novo acordo comercial global?
Sim, é possível. Não estou certo que venha a acontecer porque estamos ainda no início de uma negociação muito complexa. Mas já nos mostra que esta é uma forma de remover obstáculos ao comércio, incluindo a renovação do mandato da OMC. É preferível fazer isto no plano multilateral do que no bilateral.

Disse que temos que voltar a ganhar a opinião pública europeia. Nesta batalha pela razão e pelo coração dos cidadãos europeus, quais devem ser as prioridades? Travar o desemprego? Garantir a segurança energética?
Temos que ir mais a montante. Temos que dar uma narrativa aos europeus que não está à vista: o que é que eles fazem melhor juntos do que em separado? Porque é que temos que integrar a Europa? Depois de se estabelecer o que pode estar em causa no modo de vida europeu, no modelo social europeu, temos que ver como aumentar o potencial de crescimento para lá chegar, manter o sistema, aproveitando o mercado interno da forma mais apropriada. Na energia temos naturalmente um problema quando nos comparamos com os Estados Unidos. Não há nada como uma abordagem comunitária da transição energética na Europa. Em todos estes grandes factores para o futuro da Europa, sabemos o que fazer. Basta termos também o equilíbrio político mais apropriado para o cumprir não só ao nível comunitário, mas também nacional, de que dependem muito estas decisões. Se tiver que quantificar, diria que dois terços disto dependem do nível nacional e apenas um terço fica para o comunitário. A questão é que os dois terços não vão lá estar sem a presença do outro terço.

Para isso precisamos de mais liderança?
Sim.

Mas não a temos?
Não temos de forma suficiente. Reconheço também que a liderança nos dias de hoje é mais complicada que no passado, inclusive por boas razões. As pessoas têm mais educação, são mais críticas, seguem menos os partidos, as igrejas e os sindicatos que no passado. E tudo isso nem sempre por más razões. Por isso temos que nos ajustar a esta nova realidade e ao mais que vier - incluindo no resto do mundo, onde a classe média está rapidamente a aumentar. Tudo isto não são más notícias.

O programa "Fora da Caixa", que pode ouvir à sexta-feira a partir das 23h00, na Edição da Noite, é uma colaboração da Renascença com a EURANET PLUS, rede europeia de rádios.