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Comissão critica Portugal

“Falta um parágrafo ao relatório”, ironiza Silva Peneda

01 mar, 2015 • José Bastos

Presidente do CES sublinha as contradições na avaliação de Bruxelas à política “que a própria Comissão Europeia apoiou e incentivou”. Carvalho da Silva compara a comissão a clínico perplexo com saúde de paciente depois de cumprida, fielmente, a receita prescritra

“Falta um parágrafo ao relatório”, ironiza Silva Peneda
Presidente do CES sublinha as contradições na avaliação de Bruxelas à política “que a própria Comissão Europeia (CE) apoiou e incentivou”. Carvalho da Silva compara CE a clínico perplexo com saúde de paciente depois de cumprida, fielmente, a receita prescrita.

Na semana em que a Comissão Europeia colocou Portugal sob monitorização específica por desequilíbrios económicos excessivos, Bruxelas também acusou Lisboa de “não ter sido capaz de lidar com o aumento da pobreza”.

Esquizofrenia da Comissão escassos dias depois do "exemplo" dado por Wolfgang Schäuble? Até onde poderá ir a atitude bipolar da Europa face a Portugal?

Silva Peneda não poupa o relatório sobre desequilíbrios macroeconómicos em quase todas as alíneas, mas, em particular, na que afirma: “o sistema de protecção social não foi capaz de lidar com o aumento repentino do desemprego e com o consequente aumento da pobreza”.

“A este relatório fica a faltar um parágrafo final. O parágrafo que devia sublinhar o seguinte: ‘A Comissão Europeia regista que estes resultados são consequência de políticas que a própria Comissão Europeia apoiou e incentivou’", afirma o presidente do CES.

“Aí sim, o relatório já fazia algum sentido. Agora, elaborar um documento em que se explana todo um conjunto de resultados negativos quando a mesma Comissão Europeia foi responsável – em larga medida – pelas políticas que estiveram na base desse acordo, de facto, não faz nenhum sentido”, indica.

"Não faz sentido e não facilita a compreensão dos cidadãos sobre a forma como funcionam as instituições europeias”, anota Silva Peneda no Conversas Cruzadas.

Carvalho da Silva: “O médico está surpreendido....”
Manuel Carvalho da Silva, na mesma linha de análise, recorre a uma metáfora da prática clínica. “Eu escrevi que a Comissão Europeia se comporta como um médico – que, após ter receitado doses sucessivas de medicamentos para que o paciente emagreça e de ter garantido que todas as doses eram sucessivamente tomadas lhe faz um exame”.

“Então, ao observar o paciente o médico proclama, candidamente, 'Olhe, eu estou muito preocupado com a sua magreza'. Isto é inadmissível. Não se pode continuar neste caminho”, sentencia o sociólogo.

Mas como reflectir sobre as contradições do elogio do ministro alemão das finanças à aplicação do programa de ajustamento e um documento em que Bruxelas critica não terem sido aplicadas “medidas-chave para garantir uma cobertura adequada de assistência social?

“Acho que o senhor Schäuble não deve ter um conhecimento muito detalhado da forma como o programa foi executado em Portugal”, afirma Silva Peneda.

“Lembro-me é da arrogância e da teimosia de alguns funcionários da troika e, em particular, do cabecilha do FMI, o senhor [Poul M.] Thomsen, que tinha uma obsessão e um dogmatismo absolutos. Tinha de ser assim como dizia, ele tinha a certeza absoluta, ele tinha os livros todos e nada do que se passava à volta era tido em consideração” refere o presidente do Conselho Económico e Social.

“Tive ocasião de ter tido com o senhor Thomsen uma longa discussão sobre estas matérias. De facto, talvez o governo português não estivesse em grande posição para alterar a situação. Mas reafirmo-o com extrema convicção: o projecto da troika foi executado com incompetência. Até a nível técnico detectei várias fragilidades por parte da estrutura que foi responsável pela sua execução”, reitera o antigo ministro, que se prepara para assumir o cargo de adjunto de Jean-Claude Juncker, em Maio.

A mesma Comissão Europeia, à época liderada por Durão Barroso, que inscreveu no memorando a redução do prazo e valor do subsídio de desemprego, vem agora expressar preocupação com a menor cobertura desta protecção social. O governo português criticou a “posição de hipocrisia institucional, mas Manuel Carvalho da Silva não isenta Passos Coelho de responsabilidades.

“O primeiro-ministro aproveita a contradição, a hipocrisia, a irracionalidade do que está expresso no relatório da Comissão Europeia para tentar passar por entre os pingos da chuva”, afirma.
 
“Mas ele é co-responsável nas políticas do ponto de vista geral e, de certa forma, o primeiro responsável pela sua aplicação e, portanto, pelo desastre que é explicitado no relatório da Comissão Europeia”, denuncia.

Silva Peneda: “A solução está no que Juncker está fazer!”
Silva Peneda defende uma saída para evitar estes processos esquizofrénicos, contraditórios, no limite, exercícios políticos de hipocrisia.

“É preciso colocar mais política no centro do processo de tomada das decisões das instituições europeias”, receita o antigo deputado europeu.

“É isso o que acho que o [Jean-Claude Juncker] está a fazer. Vide questões da declaração sobre a dignidade e outras que tais. Isto tem a ver com questões políticas. Mas não é fácil alterar este estado de coisas. Lembram-se de quando um funcionário da Comissão Europeia condenou Portugal por aumentar o salário mínimo? Agora, quanto à Grécia, já não se ouviu nada de semelhante”.

“Temos, de facto, aqui um problema de coordenação nas instituições europeias”, conclui.

Já Manuel Carvalho da Silva retoma a afirmação de Jean-Claude Juncker. “A dignidade dos portugueses foi ferida em muitos aspectos. E é ferida quando, por exemplo, o primeiro-ministro, 'a la' Robin dos Bosques, repete que os sacrifícios, pela primeira vez de sempre, são feitos pelos que mais têm em vez dos que menos têm”.

“Agora este pronunciamento da Comissão Europeia vem dizer que os sacrifícios afectaram desproporcionalmente os mais pobres”, denuncia.

“E o relatório vem colocar o dedo na ferida em relação às famílias e às crianças que mais são afectadas pela pobreza e pela exclusão social. Fomos feridos em todas estas expressões”, defende o ex-líder da CGTP.

“Temos oficialmente hoje 390 mil desempregados que não recebem subsídio. Temos dezenas de milhares dos chamados 'desencorajados' que também não recebem coisa nenhuma. Basta fazer as contas”, sugere.

“Não podemos sair desta situação sem criação de emprego, sem actividades de criação de riqueza neste país. Fazendo as contas são precisos milhares de milhões de euros para repor um direito fundamental que é as pessoas terem direito a um mínimo de protecção”, afirma o professor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.

“Esta economia mata"
José da Silva Peneda avalia negativamente os resultados da aplicação do memorando na classe média, motor de desenvolvimento social.

“Onde o programa de ajustamento mais atingiu a dignidade dos portugueses foi na desestruturação da sociedade com a machadada que foi dada na classe média”, acusa. “Não conheço nenhum país que possa almejar ter crescimento económico e ser desenvolvido sem ter uma classe média forte. Esse foi o aspecto mais negativo do ajustamento”.

“Mas eu digo mais: Jean-Claude [Juncker] foi mais brando que o próprio Papa na sua mensagem. Tive a ocasião de participar recentemente em Braga numa jornada de reflexão promovida pelo senhor Arcebispo Dom Jorge Ortiga e aí reflecti sobre as palavras do Papa. Vou citar: 'o medo e o desespero apoderaram-se do coração de inúmeras pessoas mesmo nos chamados países ricos em que é preciso lutar para viver e muitas vezes viver com pouca dignidade'".

“O Papa acrescentou, e isto tem muito a ver com Portugal: esta economia mata, o poderoso engole o mais fraco, os excluídos, não só são explorados, são resíduos, são sobras".