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A geografia do silêncio

04 abr, 2012 • José Pedro Frazão e Aura Miguel

Onde paira o equilíbrio entre o silêncio e a palavra? Quem domina os mistérios do silêncio? E o que se ouve quando não há ruído? Ao longo desta semana, a Renascença reflecte sobre temas do quotidiano que se cruzam com a Semana Santa. A viagem é sempre enquadrada por uma palavra. Hoje, é silêncio.

A geografia do silêncio

O silêncio é a tábua rasa para a música, o contraste necessário para as palavras e os sons. Mário Laginha, um dos mais talentosos músicos portugueses, sublinha que “ o silêncio faz parte da música”. “Está, de uma forma óbvia, nas pausas. A música não é som ininterrupto. Quem escreve precisa de silêncio para imaginar a música.”

O silêncio torna-se urgente no Ocidente. Os sons do quotidiano passam cada vez mais por ruído.  “ O silêncio, de não ouvir música em todo o lado, permite-nos escutar os sons que a vida provoca: passos, carros, rodas. Isso é mais inspirador do que estar sempre a ouvir musica”, assegura Laginha.
 
Cada cidade tem o seu som. Numa espécie de “geografia do silêncio”, muitos apontam para a Ásia como o continente do equilíbrio entre palavra e silêncio. João Amorim, director do Museu do Oriente, viveu mais de uma década em Macau e recorda o respeito pelo silêncio.

“Talvez os orientais sejam mais contidos, manifestam menos as suas emoções. Vem um pouco da educação rígida, formal, com disciplina, feita na base da repetição. No Oriente, respeita-se mais um silêncio - não quer dizer que também não tenham mercados barulhentos como o da Ribeira ou do Bolhão. Aqui, [em Portugal], há ruído a mais, em termos mediáticos e políticos.”

Os vários tons do silêncio
É a experiência total do silêncio que leva os cartuxos a uma rotina que muito raramente é quebrada por ruídos externos. Os monges da Cartuxa de Santa Maria Scala Coeli, em Évora, abriram as portas da clausura à Renascença para partilharem os mistérios do silêncio e da solidão. O Padre Antão é um dos cinco monges da Cartuxa de Évora, onde está há 47 anos.

- Para conhecer a Deus pela fé, é preciso ouvir. Mas para poder ouvir a palavra divina é preciso o silêncio. Para ficarmos em silêncio, precisamos de solidão. O que significa o silêncio? Dá-nos Liberdade.

Por ser o mais antigo, o Padre Antão é também um porta-voz, aquele que faz o sacrifício de romper o silêncio com os de fora, quando as circunstâncias o exigem. Na Cartuxa, o silêncio é apenas quebrado pelos momentos litúrgicos, cantados. O Padre Antão brinca com as palavras e diz que os cartuxos não são os religiosos que mais bem cantam, mas aqueles que cantam mais. E o próprio silêncio tem vários tons.

- Temos o silêncio passivo, para ouvir a palavra de Deus. Há também o silêncio activo, da taciturnidade, que nos permite falar a sós com Deus. Costuma dizer-se que os cartuxos não falam de Deus para os homens, mas falam dos homens a Deus.
 
A solidão “liberta mais que o silêncio”, diz o Padre Antão. Os cartuxos conversam em comunidade ao domingo - é o seu recreio. Se muitos fora daquelas portas não conseguem fazer breves silêncios, como se consegue estar assim durante quase 50 anos?

- O silêncio activo, de não falar, é um sacrifício. Os que vão embora fazem-no por causa da solidão. O silêncio custa. Mas o que custa é começar. Com o avançar do tempo, a solidão e o silêncio são cada vez mais fáceis.

As laranjas
É o silêncio que preenche o mosteiro com o maior claustro do país, um jardim em torno do qual se distribuem as celas onde vivem, trabalham e rezam os monges da Cartuxa. Lá dentro, uma mesa para comer, uma divisão para dormir ao lado de uma pequena sala de estudo. Uma lareira ajuda aos Invernos. Um pátio interior só deixa ver e ouvir uns pássaros junto aos muros altos.

E há as silenciosas laranjas que impressionaram o escritor José Luis Peixoto, que um dia se deixou levar pelo mistério da Cartuxa. Ele que criou  "o homem que está fechado num quarto sem janelas a escrever" - a escrever como poderia estar a ler.

- Ler é um grande  exercício de silêncio. Tem muito que ver com a experiência da Cartuxa, porque a leitura tem ligações com a experiência da oração. Muitas vezes, as palavras aspiram ao silêncio - gostavam de ser silêncio, tentam dizer o silêncio. Talvez existam sentidos impossíveis para as palavras. Mas essa hipótese é o grande desafio que se coloca às próprias palavras. A sua imperfeição temporária de dizer alguma coisa é justamente o que lhes dá força para continuarem a desenvolver-se.



DEBATE DEPOIS DAS 12H00 NA ANTENA DA RENASCENÇA
Liberdade, culpa, silêncio, sacrifício e morte são os cinco grandes temas sobre os quais a Renascença vai reflectir ao longo desta Semana Santa. Cada palavra é abordada em reportagem, seguida de debate, que pode ouvir na antena da Renascença depois do meio-dia. O debate desta quarta-feira é com o bispo do Porto, D. Manuel Clemente, e com a maestrina Joana Carneiro.