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Entrevista

Bastonária. "Há advogados que utilizam cargo de deputado para acederem a contratos"

01 jul, 2015 • Marina Pimentel (Renascença) e Ana Henriques (Público). Imagem: Joana Bourgard (Renascença)

"Sob pena de deixarmos cair de podre a democracia, temos de introduzir mecanismos para que as pessoas voltem a ter confiança nas instituições", diz a bastonária da Ordem dos Advogados em entrevista à Renascença/"Público".

Bastonária. "Há advogados que utilizam cargo de deputado para acederem a contratos"
Há deputados que usam a posição para aceder a contratos que lhes interessam enquanto advogados, acusa a bastonária da Ordem dos Advogados, Elina Fraga, em entrevista conjunta à Renascença e ao "Público". A bastonária diz que "são sempre as mesmas sociedades de advogados" a ficar com os grandes contratos com o Estado.

Há deputados que usam a posição para aceder a contratos que lhes interessam enquanto advogados, acusa a bastonária da Ordem dos Advogados, Elina Fraga, em entrevista conjunta à Renascença e ao "Público".

A bastonária da Ordem dos Advogados diz que "são sempre as mesmas sociedades de advogados" a ficar com os grandes contratos com o Estado.

A ministra da Justiça anunciou o combate à corrupção como prioritário, mas os investigadores continuam a queixar-se da falta de meios. Será deliberada?
Quando tomou posse, a ministra disse: "A impunidade acabou". Mas, decorrida quase uma legislatura, em que exerceu funções com a falta de cultura democrática que todos lhe reconhecem, a impunidade continua a ser a que existia antes. Até porque essa tarefa cabe aos tribunais – e logo aí houve, da parte dela, uma invasão do poder judicial.

Quis a ministra dizer que ia mudar as regras do jogo, neste caso a lei, regras essas que foram declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, como no caso das grandes bandeiras que ela ergueu sobre a reforma do Código de Processo Penal.

Pode dar exemplos?
A questão do julgamento sumário. A ministra pretendia que arguidos indiciados de crimes cuja pena fosse superior a cinco anos fossem julgados em processo sumário por apenas um juiz.

O aumento dos prazos de prescrição foi declarado inconstitucional.
Aumentar esses prazos é estar a dizer-se que não se tem vontade de investir no combate à corrupção, porque esta medida não resolve, nem é uma medida de política criminal digna. Então, também se poderia aumentar o prazo de prisão preventiva para cinco anos, para se recolher indícios dos crimes durante mais tempo. Era interessante todos os cidadãos – eles ou os seus familiares – serem obrigados a ter a qualidade de arguidos porque isso altera a visão que se tem das coisas. Se queria acabar com a impunidade, a ministra podia ter, no estatuto da Ordem dos Advogados, estabelecido incompatibilidade entre esta profissão e o exercício da actividade de deputado. Porque há promiscuidade e tráfico de influências na própria Assembleia da República.

Isso foi uma batalha que perdeu.
Não ganho, nem perco batalhas. Não sou guerreira, sou bastonária, que é algo transitório. Muito brevemente, serei outra vez advogada. Mas espanta-me que a ministra tenha criado um regime de excepção para os deputados quando há deputados que utilizam esse cargo para acederem a determinados contratos. É absolutamente intolerável um titular de um órgão de soberania poder atender os clientes no escritório de manhã e à tarde fazer uma lei que abstractamente os pode favorecer.

Vejam-se as auditorias a contratos públicos que têm sido feitas na Assembleia da República: há sócios das sociedades de advogados que participaram nesses contratos que, na qualidade de deputados, têm fiscalizado esses mesmos negócios. Isso tem de acabar. Sob pena de deixarmos cair de podre a democracia, temos de introduzir mecanismos para que as pessoas voltem a ter confiança nestas instituições democráticas, para as quais as pessoas olham com suspeita.

Não sei se há ou não tráfico de influências, mas são sempre as mesmas sociedades de advogados a aceder aos corredores de poder, aos grandes contratos, a fazerem as privatizações. A ministra considera o exercício da advocacia incompatível com a função de juiz, presidente de câmara, vereador. Mas não com ser deputado.

António Costa prometeu que, se ganhar as eleições, acaba com os "outsourcings" de escritórios de advogados a trabalhar para o Estado. Concorda?
Já estou numa fase da vida em que ligo pouco ao que se diz em pré-campanha eleitoral. O facto de haver "outsourcing" não me oferece comentário sempre que se exijam conhecimentos técnicos que não existam nos ministérios ou na Assembleia da República. O que já não se justifica é no caso de diplomas corriqueiros se paguem fortunas a sociedades de advogados, ainda por cima muito específicas, e sem concurso público.

Que consequências retira do facto de estar prestes a perder a guerra do estatuto da Ordem dos Advogados?
Houve uma grande receptividade por parte dos deputados para introduzirem contributos no estatuto em sede de comissão especializada. Insurjo-me contra a tutela do Ministério da Justiça relativamente à Ordem dos Advogados prevista no diploma – que não é de mera legalidade, mas também de mérito. Estamos ao nível da Turquia, que enfrenta um problema semelhante: o Governo turco também quer impor tutela à Ordem dos Advogados, coarctando a sua liberdade e independência do poder político. É próprio de espíritos autoritários quererem silenciar a Ordem, que sempre foi um baluarte na defesa do Estado de direito.

Quer dar exemplos concretos de como pode a Ordem dos Advogados vir a ser silenciada?
Imagine o que será reter regulamentos imprescindíveis para o funcionamento da Ordem no Ministério da Justiça, por falta de aprovação.

Em que ficou a queixa-crime que apresentou contra os membros do Governo que aprovaram o mapa judiciário?
Há-de ser julgado. Fecharam-se tribunais e ofereceu-se uma especialização virtual: criaram-se tribunais especializados com juízes indiferenciados, na medida em que não lhes foi dada formação. É quase como criar um departamento de cardiologia e colocar lá médicos de clínica geral. Criaram-se tribunais de família e menores, mas colocaram-se lá muitos juízes que nunca tinham feito esta área. Existe a ficção de que vivemos num Estado democrático, mas depois ninguém pode ter a ousadia de incriminar um político.

Segundo a ministra, até os autarcas que estavam contra a reorganização dos tribunais agora estão a favor.
Não anda pelo país. Neste último ano, corri o país e a percepção que tenho é de um grande descontentamento dos autarcas, tanto do PS como do PSD. Não há nenhum juiz, procurador ou advogado que se reveja na totalidade neste mapa judiciário. É insustentável o que se está a passar, a negação do acesso à justiça.

Estive recentemente em Baião, cujo tribunal de família e menores foi instalado em Paredes. Há mulheres que não cobram as pensões porque não têm dinheiro para lá se deslocarem. Que são vítimas de violência doméstica que não apresentam queixa quando lhes dizem que têm de ir fazer o exame ao Instituto de Medicina Legal a 50 ou 60 quilómetros.

Quais são as suas expectativas para as próximas legislativas?
Na pasta da Justiça é necessário alguém que conheça muito bem a administração da justiça, os operadores judiciários e a geografia e as condições das populações, sobretudo mais afastadas. E que não queira deixar uma marca na história.

Como militante do PSD que é, aceitaria essa pasta se lha propusessem?
A questão não se coloca, sou bastonária dos advogados até Novembro de 2015.

Enquanto católica como vê o regresso do tema do aborto ao Parlamento?
Houve um referendo, há que respeitar a vontade manifestada pelo povo português. E há discussões que me parecem prioritárias relativamente a uma discussão que nada acrescenta à nossa civilização. Como católica, vejo com muito agrado a evolução que tem havido na própria Igreja Católica. Congratulo-me com grande parte das mensagens de paz, amor e solidariedade e até de censura a um capitalismo selvático que se tem instalado um pouco por todo o lado que este Papa deixa. São transversais a católicos e não católicos.