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Thomas Piketty: "Inexistência de imposto sucessório é uma anomalia em Portugal"

28 abr, 2015 • Paulo Ribeiro Pinto e Graça Franco [entrevista]. Conceição Sampaio e Ricardo Fortunato [vídeo]

Em entrevista à Renascença, o autor de "O Capital no Século XXI" alerta para uma elevada concentração de património num pequeno grupo de pessoas. O economista francês identifica uma "ameaça extremamente grave" que paira sobre o contrato social firmado nos países europeus.

Thomas Piketty: "Inexistência de imposto sucessório é uma anomalia em Portugal"
O autor de "Capital no Século XXI", Thomas Piketty, não é só um jovem economista polémico. Nos seus 44 anos conseguiu transformar um calhamaço de quase mil páginas sobre economia num sucesso de vendas mundial e num tema de debate fora das universidades. Piketty alerta para os riscos de uma democracia com uma distribuição da riqueza demasiado assimétrica. Em entrevista à RR diz que a ausência de um imposto sucessório em Portugal é uma anomalia e alerta para uma possível revolta da "classe média".

O autor do livro “O Capital no Século XXI”, o francês Thomas Piketty, não é só um jovem economista polémico. Nos seus 44 anos conseguiu transformar um livro de quase mil páginas sobre economia num “best-seller” mundial e num tema de debate dentro e fora das universidades, alertando para os riscos para a democracia de uma distribuição da riqueza demasiado assimétrica.

A Renascença entrevistou o economista-estrela do momento. Segundo Piketty, as teses optimistas do norte-americano Simon Kuznets, que em finais dos anos 50 defendia o esbater das desigualdades como uma evolução natural do capitalismo maduro, são contrariadas pelos dados recolhidos nos últimos 30 anos.

As taxas de retorno do capital sempre superiores às do crescimento da economia irão agravar ainda mais a desigualdade se nada for feito a nível político para combater esta perversa evolução natural.

Recorrendo a fontes não convencionais da economia como os romances dos séculos XVIII e XIX, Thomas Piketty trouxe de novo o debate sobre a opção mais racional: casar rico ou trabalhar no duro. Desta forma não parece estranho que proponha uma forte revisão dos sistemas fiscais no sentido de penalizarem a riqueza acumulada pelos mais ricos.

Esteve reunido com o líder do Partido Socialista que propõe o regresso do impostos sucessório. Concorda com esta medida?
Sim, julgo que é uma boa ideia criar um imposto sucessório em Portugal. Parece-me mesmo uma anomalia a sua inexistência em Portugal. Não é normal receber 50 mil euros ou 100 mil euros de rendimentos do trabalho, e sobre eles tem de pagar impostos pesados e ainda Segurança Social, e se receber um milhão de euros ou 10 milhões de euros sem trabalhar em herança não pagar nada. É totalmente anormal para o nosso padrão meritocrático. Devo insistir que em todos ou quase todos os países europeus há imposto sucessório. Por exemplo, na Alemanha de Merkel ou no Reino Unido de Cameron, nos Estados Unidos ou no Japão, países com tradições históricas e políticas muito diferentes.

Mas em Portugal o Partido Socialista quer tributar apenas as heranças superiores a um milhão de euros?
Bom, é preciso avaliar como esse tipo de imposto vai evoluir. Julgo que é preciso encontrar um equilíbrio entre a tributação do património no momento da transmissão por morte e a tributação anual do rendimento patrimonial. Em Portugal, como em outros países há uma tributação do património nomeadamente da propriedade imobiliária (IMI), são impostos já pesados e que de futuro podem tornar-se mais progressivos. Eu explico: hoje, os impostos sobre a propriedade fundiária em Portugal, ou a property tax, nos EUA e no Reino Unido, ou os impostos sobre o imobiliário têm por base taxas proporcional. Ou seja, paga a mesma taxa por um pequeno apartamento ou por outro de grande valor e não levam em conta o endividamento do proprietário ou os activos financeiros. Por exemplo, um jovem casal que tem um apartamento em Lisboa de 200 mil ou 300 mil euros, mas que contraiu uma divida de igual montante, vai pagar o mesmo que outra pessoa que herdou um apartamento do mesmo tipo, sem ter de pagar nenhuma dívida ou de alguém que fez um investimento vantajoso ou de um idoso que já saldou as suas dívidas. É importante criar um imposto sobre heranças, mas também é importante reformular os impostos sobre o património.

Aconselhou o PS a fazê-lo?
Sim, falei com o responsável do PS, e ele mostrou-se interessado. Este tipo de reformas é necessário. É importante fazê-lo porque não há nenhuma desculpa, porque não é por haver um imposto mais progressivo sobre o património imobiliário em Portugal que os imóveis vão deslocar-se para Paris ou Londres. Podemos fazer muitas coisas ao nível nacional e não podemos continuar a utilizar a desculpa da falta de cooperação na Europa ou internacional para não fazer nada.

As heranças não têm a mesma origem. Como não desincentivar o trabalho dos que querem deixar aos filhos algumas poupanças por oposição aos que sempre viveram de rendimentos recebidos em herança?
Claro que é preciso encontrar um equilíbrio e é complicado. Não tenho a pretensão de ter fórmulas para encontrar um equilíbrio perfeito, em última análise a decisão é política. O que posso dizer é que uma taxa de imposto de 0% sobre as sucessões é demasiado baixo. Em todos os países que citei há pouco vemos tipicamente que há taxas de imposto mais altas para heranças elevadas, superiores a um milhão de euros que vão dos 40 aos 50% na Alemanha, Reino Unido, EUA, França. O Japão, cujo governo não é particularmente de esquerda, aumentou recentemente de 45% para 55%. E teve períodos na história, como sublinho no meu livro, em que nos EUA ou no Reino Unido tinha um imposto de sucessão nas heranças mais elevadas de 60 a 70%. O importante é tratar rendimentos e propriedade de forma semelhante. Ora, quando tem uma tributação muito alta sobre os rendimentos do trabalho e 0% sobre as heranças parece-me muito difícil defender essa ideia.

Em França, o Presidente François Hollande tentou um imposto de 75% sobre os rendimentos superiores a um milhão de euros. Disse que essa taxa era totalmente ineficaz. Porquê?
No caso da França, o imposto foi retirado depois de dois anos. Esse tipo de medidas, no caso da política fiscal de François Hollande, honestamente é um pouco como política de bolso. Ou seja, foi uma medida simbólica, evitando uma reforma fiscal mais ambiciosa e profunda…

… e porque não conseguiu a receita esperada.
Essa medida não teve o resultado esperado porque são muito poucas as pessoas que têm um rendimento anual acima de um milhão de euros. O problema é que precisamos de uma reforma fiscal mais global e não apenas sobre os rendimentos anuais superiores a um milhão de euros. Julgo que o problema dos rendimentos acima de um milhão de euros coloca-se mais nos Estados Unidos do que na Europa. Claro que na Europa também temos rendimentos superiores a um milhão de euros, há grandes salários nas maiores empresas, mas não se registou uma explosão como vimos nos Estados Unidos. Não é uma política adaptada à realidade francesa onde temos grande necessidade de uma reforma fiscal mais completa. Por exemplo, em França o imposto sobre o rendimento continua a ter um ano de atraso. Não é retido na fonte, enquanto as quotizações sociais são retidas na fonte. Este atraso é muito complicado. Infelizmente, o governo de François Hollande adiou estas medidas, houve muita improvisação na política fiscal.

Inspirou em parte o trabalho académico do meu colega Paulo Ribeiro Pinto sobre a distribuição da riqueza em Portugal. Esta segunda-feira foram divulgados os resultados, que mostram que os 1% mais ricos detêm 21% da riqueza. Considera um valor elevado face ao desenvolvimento de Portugal?
Julgo que é muito elevado, mas, infelizmente, é representativo do que existe no resto da Europa. Portugal não é muito diferente do que se passa na França ou em Espanha. É verdade que o património está muito concentrado. O que mostro no meu livro é uma ordem de grandeza entre os 10% mais ricos que possuem mais de 50% do património. Se recuarmos alguns anos – e é isso que tento fazer no meu livro ao colocar a questão numa perspectiva histórica – ainda é pior: os 10% mais ricos possuíam 80% do património quando actualmente estamos a falar de 50%. O que quero dizer é que houve uma grande transformação ao longo do último século. Temos actualmente uma classe média patrimonial que possui 30 a 40% do património total que não existia há um século. No meu livro tento distinguir entre os 10% mais ricos, os 50% mais pobres e ainda os 40% do meio – que apelido de “classe média patrimonial” – que surgiu no século XX e essa é a grande transformação. A questão é saber o que se vai passar a seguir: a classe média patrimonial terá uma tendência a perder peso no património total? Ainda não regressámos à situação de há um século, mas há uma lenta evolução nesse sentido.

Então, o que podemos fazer pela classe média?
Na Europa, por oposição aos EUA, ainda temos um modelo social das instituições, do Estado Providência, na educação, na saúde, com um sistema fiscal que permite limitar essa deriva de desigualdade e que permite que a classe média não perca peso no património total. Mas, ao mesmo tempo, é preciso ver que temos uma falha particular na Europa – inexistente noutras partes do mundo como nos EUA – que é uma concorrência intensa entre os países para atrair o investimento, o património e mais receita que nos pode conduzir, pouco a pouco, em direcção a um sistema fiscal em que a classe média acabará a pagar mais impostos que as pessoas mais ricas ou que as grandes empresas. Ou seja, a classe média acabará por perder o seu peso patrimonial e poderemos assistir a uma "revolta fiscal".

Isto porque o contrato social que nos liga nos países europeus resulta de uma escolha que fizemos: impostos elevados, em alguns casos de 40 ou 50% da riqueza anual, para financiar os serviços públicos, os serviços sociais. O contrato social de base é que temos impostos elevados, mas toda a gente paga. Se a classe média tem a impressão de que as pessoas mais ricas não pagam, então poderão ter a tentação de tornar-se mais egoístas, individualistas e isso é um risco que nos ameaça de forma extremamente grave.

O economista Simon Kuznets interpretou os dados dos 30 anos anteriores a 1950 e a sua teoria – a "curva de Kuznets", que refere que as desigualdades aumentam numa primeira fase do desenvolvimento e depois acabam naturalmente por descer – revelou-se errada quando tentou projectar o futuro. Receia que os seus dados possam estar ultrapassados pelas circunstâncias da revolução tecnológica ou pela globalização? No seu livro revela uma perspectiva pessimista.
Não é um livro pessimista. É na realidade um livro optimista. Eu acredito no progresso, no capitalismo e acredito nas forças da concorrência. Precisamos é de instituições democráticas, educativas e fiscais que nos permitam colocar o capitalismo e as forças da concorrência dentro do que considerados o interesse geral. Julgo que é possível. É um livro optimista. Na introdução do livro afirmo, aliás, que se alguém publicasse em 1913 um livro com o título "O Capital no Século XX" cometeria muitos erros.

Eu não pretendo prever o futuro. A minha vantagem, face a Kuznets, é que tenho muitos dados históricos. Se isso permite prever o futuro? Não. Julgo que, pelo menos, ficamos com uma ideia da história. Para concluir, temos de ter em atenção que existem diferentes forças muito fortes que podem conduzir a uma desigualdade e que é possível contrabalançá-las através das instituições políticas.

A principal conclusão, sem dúvida, é que não acredito em processos económicos determinísticos. A história da distribuição do rendimento e do património não é apenas uma história económica. É também uma história política, social, cultural. É por essa razão que utilizo no meu livro representações das desigualdades no debate político, na literatura. Julgo que é essa representação colectiva das desigualdades que determinam as instituições e as políticas. Não existem forças naturais na economia. As forças naturais do capitalismo não existem na realidade porque tudo depende do sistema legal, do sistema institucional: quando desregulamos o mercado financeiro, quando limitamos os direitos dos sindicatos quando privatizamos activos, as regras naturais são políticas específicas. Não temos outras.

Tem acompanhado o impasse nas negociações entre a Grécia e o Eurogrupo. Poderemos estar perante um "grexit" iminente? Ou algo acabará por mudar?
Espero que os governos europeus não cometam essa loucura e não permitam uma saída da Grécia. Neste momento não sei o que vão fazer. Espero que os governos de França, Itália e a opinião pública encarem o assunto. Seria uma catástrofe. A saída da Grécia seria o início do fim da Zona Euro, porque na manhã seguinte os mercados financeiros especulariam sobre o próximo país. E mesmo que tal não aconteça no dia seguinte ou na semana seguinte, acabaria por acontecer passado dois anos ou cinco anos e assistiríamos a outras saídas da Zona Euro. Se começarmos com uma saída da Grécia. Isso é certo. Os responsáveis políticos têm uma responsabilidade histórica neste caso. É deprimente percebermos que se perderam quatro meses a não discutir nada.

Mas de quem é a culpa?
O mais grave nesta história é que ninguém sabe o que se passa nesses conselhos de ministros das Finanças. Há uma falha das nossas instituições e no sistema democrático.

Há falta de transparência?
Sim, é isso. Proponho um parlamento da Zona Euro. Os conselhos dos chefes de Estado e de Governo e dos ministros das Finanças funcionam como na Europa do século XVIII quando tínhamos reis e rainhas que se reuniam e decidiam como seria o futuro da Europa. Ninguém sabe os argumentos que são discutidos. Por exemplo, quando houve a decisão sobre o Chipre. Os ministros das Finanças tiveram essa ideia “genial” de uma taxa de 10% sobre todos os depósitos bancários. Na manhã seguinte estava toda a gente nas ruas de Chipre e não houve um único ministro das Finanças a defender, publicamente, a decisão que foi tomada por unanimidade à porta fechada. E quando questionados todos diziam "não é culpa minha, é do outro ministro". E isso é o mesmo que se passa com a Grécia. É tudo feito à porta fechada, não conhecemos os argumentos, não sabemos nada! A imprensa europeia tenta adivinhar de quem é a culpa.

Sinceramente, não sei de quem é a culpa, se do Varoufakis, que todos dizem ser um negociador exímio, ou de outros. Não estou aqui para o defender. Ao mesmo tempo julgo que a França e a Alemanha também têm responsabilidade e o governo grego entre 2009 e 2012 também cometeu muitos erros. A solução que a Zona Euro impôs não foi a melhor. Actualmente, toda a gente o reconhece. Em 2012 disse-se que a Grécia precisava de um excedente orçamental de 4% PIB durante 10 anos. Isso nunca acontecerá porque é absurdo. Os orçamentos anuais para o ensino superior em países como a Grécia ou Portugal não ultrapassam os 1%. Vamos consagrar mais recursos ao pagamento da dívida do que ao futuro das jovens gerações? É absurdo. As autoridades francesas, alemãs e europeias recusam reabrir os acordos de 2012. É preciso fazê-lo.

Considera que com taxas de juro negativas e toda a política do Banco Central Europeu pode alterar o cenário para os próximos anos?
As taxas de juro negativas são um sintoma de disfuncionalidade grave e de falta de confiança na Zona Euro. Os investidores privados que não querem investir preferem alugar um cofre no BCE para lá colocar o seu dinheiro, mesmo que isso custe 0,1% ou 0,2% por ano. É sinal de falta de confiança e crise nos países da Zona Euro. Os países da Zona Euro têm de fazer um esforço de continuar junto. Isto é, ter uma moeda única com 18 economias diferentes, 18 taxas de juro diferentes, 18 sistemas fiscais sobre empresas com a concorrência que existe. Temos de caminhar no sentido de uma política orçamental e fiscal comum, um fundo comum de redenção da dívida como já propus.

O Partido Comunista chinês disse há poucos dias que faltam multimilionários na China e que isso não é contraditório com a justiça social. Isto surpreende-o?
É um pouco inquietante. A tentativa do Partido Comunista chinês regular as desigualdades dessa forma é inquietante. Julgo que as autoridades chinesas devem caminhar no sentido de maior transparência com um sistema fiscal mais previsível. Não é com as condenações a prisão nos casos de corrupção que vão resolver o assunto. Sabe que a China é o único país em que, havendo impostos sobre os rendimentos, não há estatísticas sobre a cobrança. É impossível saber. Quando disse isso às autoridades chinesas eles responderam que "sim, sim, vamos elaborar estatísticas", mas os estrangeiros não poderão ter acesso.

[Actualizada às 16h29. Entrevista publicada na íntegra]