Tempo
|

Conversas Cruzadas

Há "pensamento mágico" no plano do PS?

26 abr, 2015 • José Bastos

"Duvido que a Comissão Europeia aceite metas", diz Santos Almeida. Já Caldeira Cabral defende estudo macroeconómico que ajudou a elaborar e Daniel Bessa alerta para "facas afiadas no PS" contra o plano.

Há "pensamento mágico" no plano do PS?

“O Partido Socialista tem de dar alguma coisa para ganhar as eleições dentro da sua opção ideológica legítima”, sustenta Daniel Bessa na análise do programa macroeconómico do PS.

O antigo ministro da Economia defende, no “Conversas Cruzadas” da Renascença, que agora, finalmente, “estamos a falar de política”.

“O PS necessita de dar aos portugueses a indicação de que tem mais dinheiro para distribuir e esse dinheiro está nos salários da Função Pública, está, por exemplo, na redução da TSU e não apenas para as empresas”, afirma Daniel Bessa.

“Falta saber se esse suplemento de rendimento vai tão a consumo como por vezes se antecipa. A minha dúvida é mais saber se este aumento de rendimento que aqui se está a deixar, nomeadamente nas famílias, porque é nas empresas não nas empresas vai tão a consumo quanto isso.”

“Porque vai ser um slogan ideológico: ‘famílias não empresas!’. Receio que haja aqui um pouquinho de optimismo.”

Álvaro Santos Almeida tonifica a argumentação defendida por Daniel Bessa visando mais longe. “Mais que isso”, diz o economista.

“É que o modelo assume que o consumo cresce mais que o próprio rendimento disponível, porque a taxa de poupança cai de 9 para 6%. Portanto, não só assume que é tudo gasto em consumo como vai além”, observa.

“Obviamente, parece-me que há aqui algum optimismo na capacidade da Comissão Europeia aceitar este tipo de metas para o défice. Não está previsto no documento mas, nas minhas contas, o défice estrutural aumenta o que vai contra os princípios do Tratado Orçamental”, nota Álvaro Santos Almeida.

“Uma vez que Portugal não tem um défice controlado o saldo estrutural tem que diminuir e aqui aumenta. Vai no sentido contrário. Duvido que a Comissão Europeia aceite este tipo de metas”, antecipa o professor de Economia da Universidade do Porto.

Num ângulo mais político, Álvaro Santos Almeida saúda a apresentação do estudo macroeconómico elaborado por 12 economistas próximos da área socialista.

“Apesar de ser um documento de continuidade a partir de um tronco comum, é um documento que corporiza uma alternativa. Tem políticas diferentes daquelas que estão no Pacto de Estabilidade e Crescimento. É o tal aspecto que é muito positivo neste documento no sentido em que permite o debate”, defende.
“Dentro de um quadro comum, tomando em consideração o contexto em que a economia portuguesa se insere, apresenta alternativas que podem ser comparadas e discutidas”, nota.

Álvaro Santos Almeida: “Agora vai resultar?”
“A grande diferença entre o Pacto de Estabilidade apresentado e este documento do PS é que, enquanto o Governo assenta a estratégia de crescimento na competitividade externa e nas exportações, este relatório assenta o crescimento no mercado interno e no aumento da procura interna. “É uma diferença qualitativa importante”, assinala Álvaro Santos Almeida, interpelando directamente Manuel Caldeira Cabral, um dos autores do documento e convidado especial desta edição de “Conversas Cruzadas”.

“O que pergunto ao professor Caldeira Cabral é porque é que o grupo de trabalho acha que uma estratégia assente no consumo interno e endividamento, a usada na década passada com resultados já vistos, desta vez  irá terá um resultado diferente?”, é a questão de Álvaro Santos Almeida.

Manuel Caldeira Cabral repele os pressupostos da pergunta. “Claramente a nossa estratégia não é nem centrada no endividamento nem é centrada apenas no consumo interno”, afirma.

“É centrada numa ideia diferente de que para ter um salto no crescimento e ter uma retoma a sério – estancando a perda da actividade económica em que estamos – são precisas, em simultâneo, medidas do lado da procura e do lado da oferta”, explica.

“A diferença aqui é que as medidas do lado da oferta são radicalmente diferentes das que têm sido seguidas pelo actual Governo”, sustenta Manuel Caldeira Cabral.

“O Governo tem assentado a ideia da competitividade externa na compressão da procura interna, porque é por estas compressão que se mantêm baixos salários e baixos factores de produção”, observa o economista.

Álvaro Santos Almeida robustece a dúvida. “O programa do PS também tem salários baixos. Nesse aspecto não é diferente”, nota.

Já Caldeira Cabral amplia o enunciado. “A ideia da remuneração por trabalhador cair tem a ver com o crescimento do emprego ser, em grande medida, previsto tendo em conta as condições do mercado”. “Não é os salários caírem – prevemos que os salários de quem já está empregado cresçam ao ritmo da inflação, mas não mais -  é os novos empregos continuarem a estar com salários abaixo da média”, defende.

“Ou seja, o aumento do emprego gera uma diminuição do salário médio. É essa a ideia que está no modelo para ser realista. Não acho que se deva ter grandes aventuras de grandes aumentos salariais, poria em causa a competitividade, mas a ideia de que a competitividade vem apenas da compressão salarial é uma ideia que a própria realidade desmente”, sustenta Manuel Caldeira Cabral

Manuel Caldeira Cabral: “Veja-se a indústria do calçado”
“Veja-se o caso da indústria de calçado. Não deu a volta por esmagar salários. Nos últimos dois anos até teve aumentos. Deu a volta porque teve uma estratégia sectorial integrada”, afirma Manuel Caldeira Cabral.

O economista que integrou a equipa dos 12 peritos convidados do PS recentra argumentos numa das sugestões chave do documento. “O que acelera o crescimento no curto prazo são muito mais as medidas do lado da procura. Isso é óbvio que sim”, reconhece.

“Agora o que dá consistência ao exercício que fizemos é ter também medidas do lado da oferta que garantem densidade e estabilidade de médio e longo prazo. Por isso é que prevemos que, por exemplo, o saldo externo não tenha uma evolução tão positiva como no Programa de Estabilidade e Crescimento”, alerta.

Daniel Bessa retoma a visão “grande angular” do programa económico do PS. “A análise tem sido muito feita sobre a maior aposta no consumo interno por contraposição às exportações, mas acho que isso é consequência de uma opção ideológica dos autores”, sustenta o antigo ministro da Economia.

“Ou seja: é o resultado a que se chegou pela vontade de melhorar de imediato o rendimento disponível interno. Por isso é uma alternativa política que decorre de uma opção ideológica”, sublinha Daniel Bessa.

“Gostava de saudar a qualidade do exercício. E vou sobretudo prestar o meu público respeito a três pessoas que fazem parte dos doze envolvidos. Dispenso títulos: são o Mário Centeno, o Manuel Caldeira Cabral e o Paulo Trigo Pereira”, identifica.

“São três pessoas que muito respeito a quem eu, seguramente, compraria um carro em segunda mão. Tenho a melhor opinião sobre estes três colegas”, ratifica o director-geral da Cotec Portugal.

“Em segundo lugar, sublinho que o estudo respeita a ‘ordem europeia’. Do meu ponto de vista estão, no essencial, respeitadas as grandes orientações da política europeia. Trata-se de uma alternativa de política interna muito saudável. Posso gostar mais ou menos, mas isso é outra opção. O importante é existir a alternativa”, faz notar Daniel Bessa.

“Os socialistas são, às vezes acusados pela direita – que, às vezes, tem umas expressões mais irónicas - de pensamento mágico. A direita gosta muito de acusar o PS de pensamento mágico”, diz .

“Por exemplo esta tese de que gasta mais e depois vai haver também mais receita. Ou de que se começa por cobrar menos impostos e depois se vai crescer. É o tema dos multiplicadores. É muito técnico, não quero ir por aí”, nota. “Mas acho que há aqui uma pitadinha de optimismo, talvez um excesso de confiança nos resultados finais do crescimento da economia e, sobretudo, no emprego”, afirma Daniel Bessa.

Daniel Bessa: “No PS já há facas afiadas para tratar da vida a ‘idiotas úteis’”
“Por último a minha dificuldade maior: já não é a primeira vez que o Partido Socialista se envolve em exercícios destes. Chamar um grupo de independentes e pô-los a fazer um trabalho. Eu próprio conheço esse filme. Já estive metido nisso”, recorda Daniel Bessa. “Só não fiz tão bem feito, porque os meios eram outros”, diz.

“Agora há uma ‘comissão de frente’ excelente. Vi o Mário Centeno, temos aqui connosco o Manuel Caldeira Cabral. Agora não sei quanto tempo vai durar esta ‘comissão de frente’”, afirma Bessa numa alusão tácita às reservas de sectores do PS ao despedimento “conciliatório” e aos cortes das pensões para compensar baixa na TSU.

“Era muito importante que estes colegas em quem eu acredito viessem dizer que a proposta é mesmo aquela no seu todo. Não é para, depois, fazer a metade de que gostamos e deitar fora a metade de que não gostamos. Isso é terrível”, alerta Daniel Bessa completando o desafio aos 12 economistas.

“No PS há muitas facas afiadas para tratar da vida a estes ‘idiotas úteis’. É o risco maior que correm. Fizeram este exercício com a qualidade que tem, dão a cara por ele e espero que depois o partido não os trate como tratou outros no passado”, remata Daniel Bessa num traço autobiográfico com sabor irónico.

Manuel Caldeira Cabral não recusa o repto. “Idiotas úteis? Concordo ser esse – sempre - o risco de quem se envolve nestas coisas. É uma pessoa fazer o seu melhor, colocar as coisas em cima da mesa e ter uma esperança legítima e razoável de serem aplicáveis. Todos nós insistimos muito – o Mário Centeno também – na ideia da coerência do documento.”

“Há uma consistência no documento que deve ser avaliada e aplicada no seu conjunto. O que não quer dizer que não haja espaço de escrutínio e debate.” 

“Uma coisa não é contraditória com a outra. Há definições de evolução de políticas de contas públicas que são consistentes com, depois, outras opções de detalhe e de políticas importantes dentro de cada área”, alerta Manuel Caldeira Cabral.

“Não são é definições consistentes com dezenas de opções que sejam de aumento de despesa ou outras”, remata.