Emissão Renascença | Ouvir Online

Análise

EUA/Cuba. Regresso ao futuro?

17 dez, 2014 • José Bastos

Obama abrirá embaixada, levantará restrições a viagens e comércio e pedirá ao Congresso o fim do embargo.

EUA/Cuba. Regresso ao futuro?
"Uma mulher como eu, nascida em Cuba em 1970, viveu toda a sua vida no embargo norte-americano. Cresceu e amadureceu com o embargo. Viveu e vive bloqueada. Como será viver numa Cuba sem embargo?". A pergunta de Wendy Guerra, novelista e poetisa cubana, desta manhã, no blogue Habáname, começou já ser respondida em Washington e Havana.

"A abertura é melhor política que um isolamento em fracasso há 50 anos". Com esta nova filosofia resumida nesta frase de um alto funcionário da administração Obama, reproduzida nas agências noticiosas, os Estados Unidos e Cuba iniciam uma nova era nas relações bilaterais, quase 52 anos depois da ruptura de contactos diplomáticos directos. "Não podíamos continuar a fazer o mesmo e esperar resultados diferentes", insistiu o diplomata.

Washington encerrou a sua embaixada em Havana em Janeiro de 1961, dois anos depois do triunfo da revolução cubana e da chegada ao poder de Fidel Castro, entretanto, já sucedido pelo seu irmão Raúl Castro.

Agora, os Estados Unidos preparam-se para abrir de novo uma embaixada "nos próximos meses" e Obama pediu ao secretário de Estado, John Kerry, que "inicie de imediato" o diálogo com Cuba para o restabelecimento de relações.

Kerry também tem instruções para iniciar de novo o processo de retirar Cuba da lista de Washington dos países designados como "patrocinadores do terrorismo", lugar ocupado desde 1982.

O degelo teve o primeiro gesto numa troca de prisioneiros: um espião norte-americano com mais de duas décadas numa prisão cubana (não será identificado publicamente) e três cubanos detidos em Miami, 2001, e condenados por espionagem. Mais: Havana libertou ainda, "por motivos humanitários", um norte-americano, Alan Gross, há cinco anos num cárcere cubano e cujo estado de saúde dava sinais de agravamento.

"Hardliners" republicanos antecipam "não" do Congresso
Barack Obama deu pistas sobre o futuro do embargo, no discurso desta tarde, a partir da Casa Branca, em que anunciou "o fim do isolamento" de Cuba, "obsoleto", depois de "fracassar durante décadas".

O Presidente coloca a resposta do lado do Congresso, onde terá de convencer boa parte dos republicanos para "ter uma Cuba mais livre e mais próspera" depois de "estender uma mão de amizade" ao povo cubano.

Do outro lado do estreito da Florida, em Havana, Raúl Castro confirmava "adoptar medidas mútuas para melhorar o clima bilateral". Obama e Castro agradeceram a mediação do Vaticano e do Canadá durante os últimos meses.

Não tardou a reacção da linha dura do Partido Republicano, tradicionalmente, próxima da colónia de exilados cubanos de Miami. O senador de origem cubana Marco Rubio protagonizou a primeira reacção a esta alteração histórica nas relações entre os Estados Unidos e Cuba.

Rubio assegurou à conservadora cadeia de televisão Fox News que o Congresso não apoiará o levantamento do embargo ao regime castrista. Mais: a libertação do cooperante Alan Gross "constitui um perigoso precedente" que "fixa um preço aos cidadãos norte-americanos no estrangeiro".

Já o presidente do comité do Senado para as relações exteriores, Bob Menéndez, seguiu a mesma linha de Marco Rubio. Menéndez observou que as acções de Obama "legitimam o brutal comportamento do governo cubano", enquanto defendia que "trocar Alan Gross por criminosos condenados constituí um perigoso precedente".

Muda tudo? Muda só a aparência?
É uma reaproximação histórica, mas também é verdade que há muitos anos Havana e Washington mantinham conversações abertas sobre áreas de interesse comum. Era um diálogo qualificado como técnico por ambas as partes, mas que, em bom rigor, era o preâmbulo de uma ampla negociação política a frutificar agora.

Exemplos de temas negociados: desastres ecológicos, imigração, resgate e salvamento marítimo, segurança aérea ou relações entre militares na base de Guantánamo. Curiosamente, Washington nunca incluiu na agenda a luta contra o narcotráfico.

Em todos esses pontos os resultados foram positivos. O diálogo sobre segurança aérea, por exemplo, permitiu uma satisfatória coordenação bilateral durante um acidente com um avião norte-americano que em Setembro cruzou o espaço aéreo cubano despenhando-se na Jamaica.

Ainda assim, por resolver nos próximos tempos estão todas as grandes questões na medula do conflito: o bloqueio económico; as propriedades norte-americanas nacionalizadas pós-revolução; os direitos humanos; o financiamento da oposição interna cubana; e, claro, a base de Guantánamo.

O regime de Havana sempre manteve a disposição de negociar com Washington sobre qualquer tema, mas sob três princípios: diálogo em pé de igualdade, reconhecimento de soberania e não ingerência em assuntos internos.

Exemplo da dificuldade em relação a este diálogo é que, quando Washington insiste em debater a situação dos direitos do homem em Cuba, Havana contrapõe sempre com a necessidade de analisar o mesmo cenário nos Estados Unidos, sublinhando o que diz ser "a pobreza de milhões de norte-americanos" ou detenções extra-sistema judicial, a tortura, assassinatos selectivos ou ainda a recente violência policial contra negros.

Continua a ser do tamanho do estreito da Florida a distância que separa politicamente Havana de Washington e, nos corredores do regime castrista, não há certezas quanto à normalização total de relações. Afinal, mais de 50 anos de ressentimento histórico não se apagam num só gesto. Mas do que ninguém parece duvidar em Havana é que nunca como agora estiveram criadas condições tão favoráveis a essa alteração de fundo. Nem quando, na administração Carter, se abriram delegações diplomáticas e se assinaram acordos marítimos e de pesca.

O "New York Times" leva já, em tempos recentes, cinco editoriais a defender a mudança de política face a Cuba. Durante a administração Obama não há registo de situações de tensão e o discurso mútuo não foi agressivo. No plano diplomático, toda a América Latina e os aliados europeus empurravam Washington para a normalização das relações com Havana.

A bola está agora definitivamente no Congresso. Na gestão das tensões entre os republicanos próximos do Tea Party e a ala mais liberal radica a resposta. Os primeiros já perguntam se "estas alterações vão ter contrapartidas por parte dos ditadores da ilha: os irmãos Castro".

Nas ruas de Havana, aposto, os cubanos encostados nos muros do Mallecón, olhos postos no mar das Caraíbas, deverão reagir com a cautela de décadas. Não é a primeira vez que se produz uma aproximação frustrada depois dos primeiros passos.

Desta vez parece ser diferente, mas também quase todos não viveram nunca de outra maneira: 73% dos cubanos vivos sofrem o embargo desde o primeiro dia de vida.

Wendy Guerra não está só.