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O cante alentejano é "um produto do século XXI"

27 nov, 2014 • Pedro Rios

Amílcar Vasques Dias cruzou-o com o jazz. Nas suas voltas pelo país, o documentarista Tiago Pereira encontrou um género em constante reinvenção – "um produto do século XXI".

O cante alentejano é "um produto do século XXI"
O cante alentejano faz parte da tradição, mas não é um produto acabado. Amílcar Vasques Dias cruzou-o com jazz. O documentarista Tiago Pereira encontrou-o reinventado em vários pontos do país, como "um produto do século XXI".

Amílcar Vasques Dias chegou a Évora há década e meia para dar aulas de música. O cante alentejano, que ouvia na rádio e na televisão, não dizia "nada de especial" a este minhoto que estudou no Porto e na Holanda e deu aulas na Universidade de Aveiro. Até que ouviu dois cantadores sozinhos e pôde perceber o que diziam aquelas palavras.

"São quadras relativamente simples, só que entram muito fundo na imaginação. Não se pode ficar indiferente a algo que diz: 'A terra paga-me em vida/ Eu pago à terra em morrendo'", conta.

Experimentou intrometer o seu piano jazz no canto de dois cantadores do Grupo Cantares de Évora. Nasceram os CantePiano, que se apresentaram pela primeira vez no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, em Fevereiro de 2013.

No cante alentejano, que a Unesco classificou esta quinta-feira como Património Cultural Imaterial da Humanidade, as vozes vivem sozinhas: é essa a sua força, diz o compositor. Amílcar Vasques Dias fez do piano uma "terceira voz", com "timbres" e "melodias estranhas" ao canto: não quis perturbar a beleza das vozes e a sua simplicidade.

"É incrível como da semelhança quase óbvia em dezenas e dezenas de modas do cante tradicional, que são melódica e harmonicamente muito semelhantes, aparece uma diferença constante pela maneira de fazer, pela riqueza dos textos, pela atitude quase religiosa, quase de cerimonia litúrgica… Fui dando conta que é um ritual", conta.

O pianista mergulhou em modas sobre limoeiros, águias, ceifeiras e a "terra sagrada do pão". "É um panteísmo muito… A única palavra que posso dizer é: lindo. É a confusão linda da natureza, das árvores, das aves, dos pássaros, dos bichos, das flores, a mulher, a namorada, os lírios".

"Que as pessoas cantem"
O cante alentejano é tradição, mas não é peça de museu, diz Amílcar Vasques Dias. "Há grupos de rapazes, de 18, 20 anos, a cantar de forma muito verdadeira, muito intensa".

O documentarista Tiago Pereira já gravou muitos deles. É responsável pelo projecto A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria (um arquivo "online" de milhares de vídeos com músicos de todo o país).

Já captou o cante servido na sua forma mais "pura" ou em contaminações estilísticas. "O que importa é que as pessoas cantem", diz.

"O cante sempre foi inventivo", afirma. "A partir do momento em que a voz é tratada como um instrumento tudo é possível", afirma. "Pode-se fazer muito mais coisas com ele. Sem desrespeitar o que está feito, pode-se inovar, usá-lo como um produto do século XXI."

O cante é uma "liturgia" em qualquer lugar onde seja apresentado, diz Amílcar. "Pode pensar-se: se é na tasca é uma coisa, se é na igreja é outra coisa". Mas não: em qualquer lugar, "a liturgia segue o seu caminho e só quando acaba a moda há um momento de descontracção".

É uma música que retrata uma "filosofia de vida, uma certa maneira de estar no tempo, na vida, na natureza". Uma música que é o próprio Alentejo, dir-se-ia.