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Pedro Leal

P1 Uma espécie de "golpe de estado" à democracia

24 nov, 2014

Os casos em investigação constituem uma espécie de "golpe de estado" à democracia. Se tudo se confirmar vivemos um simulacro de realidade.

Não é difícil adivinhar o misto de sentimentos que por aí vai. Entre os que acham que Sócrates merecia isto e muito mais, desde o dia em que foi eleito, e aqueles que se inclinam para a tese da cabala, e que tudo lhe desculpam, há um multiplicar de sentimentos que falham o essencial.

O mundo mudou. Até esta segunda-feira tudo se passava no campo dos rumores e das desconfianças. É certo que devemos presumir a inocência até ao trânsito em julgado, mas o impacto dos acontecimentos das últimas 72 horas… vai muito além de Sócrates.

A onda de choque da detenção do ex-primeiro-ministro, e agora a prisão preventiva, ultrapassa o próprio caso José Sócrates. O somatório de todos os escândalos que vamos tendo conhecimento atinge o nível e a qualidade do espaço público e coloca em causa uma certa elite. 

Se olharmos para a listagem de escândalos de que nos últimos anos, meses, semanas, temos tido conhecimento quase todos radicam numa ausência extrema de valores que potenciam comportamentos autistas em que o bem comum, o outro e o interesse colectivo estão sempre ausentes. Este é o único problema: falta de valores.

Que sociedade é esta? O que aconteceu com esta geração? Que implicações no país político? E não me refiro às eventuais consequências no espectro partidário, refiro-me às consequências na qualidade da própria democracia, nas instituições.

Os casos em investigação constituem uma espécie de “golpe de estado” à democracia. Se tudo se confirmar vivemos um simulacro de realidade.

Francisco Sarsfield Cabral tem razão quando escreve que, “por mais dolorosa que seja, a verdade é preferível ao desconhecimento dos males que devem ser corrigidos, algo impossível se os ignorarmos”.

Pura verdade. E até agora as boas notícias chegam apenas da actuação da justiça: no mínimo pela coragem da investigação. Esperemos que continue cega.

Mas na sexta e na segunda-feira à noite o mundo ganhou uma cor mais cinzenta. Há uma certa perda de inocência, um novo estado de alma. Por contraste, não resisto aqui a relembrar uma canção de Chico Buarque, escrita na sequência do 25 de Abril. Uma canção, na altura, censurada no Brasil e que tinha a seguinte letra:  

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
 
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim
 
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
 
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
 
Eram outros tempos em que, apesar do PREC, Portugal inspirava poetas. Agora, cá, vamos estando doentes.