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João Paulo II e Bento XVI – dois papas com a Europa no coração

24 nov, 2014 • Filipe d'Avillez

O Papa visita esta terça-feira instituições europeias. Os antecessores deram uma grande importância à Europa e à salvaguarda do seu património cultural cristão. João Paulo II visitou também as instituições em Estrasburgo em 1988.

João Paulo II e Bento XVI – dois papas com a Europa no coração
Na manhã desta terça-feira, Francisco vai tornar-se o segundo Papa a visitar o Parlamento e o Conselho da Europa desde as suas fundações, depois de João Paulo II, em 1988. A viagem do Papa polaco deu-se no contexto de uma Europa dividida ao meio por uma cortina de ferro metafórica, mas por arame farpado e diferenças ideológicas bem verdadeiros.

Na manhã de terça-feira, Francisco vai tornar-se o segundo Papa a visitar o Parlamento e o Conselho da Europa desde as suas fundações, depois de João Paulo II, que fez essa viagem, também a Estrasburgo, em 1988.

A viagem do Papa polaco deu-se, contudo, num contexto praticamente inimaginável para quem nasceu já na década de 90. Uma Europa dividida ao meio por uma cortina de ferro metafórica, mas por arame farpado e diferenças ideológicas bem verdadeiras.

Do lado de "lá" dessa divisão encontravam-se povos historicamente cristãos, mas agora a viver sob regimes comunistas, incluindo a pátria do próprio João Paulo II. O tema simplesmente não podia deixar de ser referido.

"Certamente outras nações poderão unir-se às que hoje estão aqui representadas. O meu desejo enquanto pastor supremo da Igreja Universal, vindo da Europa Central e conhecedor das aspirações dos povos eslavos, esse outro ‘pulmão’ da nossa mesma pátria europeia, é que a Europa possa um dia crescer para as dimensões que lhe foram dadas pela geografia e pela história", disse João Paulo II aos então representantes do Parlamento Europeu.

"Como não o desejar, tendo em conta que a cultura inspirada pela fé cristã marcou profundamente a história de todos os povos da nossa Europa única, gregos e latinos, germânicos e eslavos, apesar de todas as vicissitudes e para além dos sistemas sociais e das ideologias?", questionou ainda.

Mas, apesar de a divisão da Europa ter marcado muito o discurso de um Papa (instrumental para o fim dessa mesma divisão, que se iniciaria já no ano seguinte), o resto do discurso abordou temas que se mantêm actuais, incluindo a crítica a sistemas ideológicos que consideram o homem "como o princípio e fim de todas as coisas, e a sociedade, com as suas leis, suas normas, suas relações, como obra sua, absolutamente soberana. A ética não tem então outro fundamento que não o consenso social. E a liberdade individual não tem qualquer limite para além daquele que a sociedade considera ter de impor para salvaguardar a liberdade do próximo".

A "herança cristã"
João Paulo II não terminaria o seu discurso sem alertar para o que via como o perigo de afastar a fé da praça pública: "Há cerca de dois milénios que a Europa oferece um exemplo muito significativo da fecundidade cultural do cristianismo que, por sua natureza, não pode ser relegado para a esfera privada. O cristianismo, de facto, tem vocação de presença activa em todos os domínios da vida. Também é meu dever destacar que, se o substrato religioso e cristão deste continente for afastado do seu papel de inspirador da ética, não somente toda a herança do passado europeu seria negada, como um futuro digno para os europeus – de todos, sejam crentes ou não crentes – estaria gravemente comprometido".

A importância dos valores cristãos para a cultura europeia foi sublinhada ainda mais uma vez, num discurso feito à Comissão Europeia e ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

"Os direitos humanos de que falamos encontram o seu vigor e a sua efectividade numa rede de valores, profundamente enraizadas numa herança cristã que contribuiu tanto para a cultura europeia. Estes valores fundacionais antecedem a lei positiva que lhes dá expressão das quais são a base. Precedem ainda as razões filosóficas que as várias escolas de pensamento lhes podem atribuir".

No contexto dessa mesma visita, o Papa recordou, diante da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, os "pais da Europa", nomeadamente Jean Monnet, Konrad Adenauer, Alcide de Gaspari e Robert Schuman, sublinhando que estes eram animados pela vontade de promover a "fraternidade cristã" numa humanidade "libertada do ódio e do medo".

O resto deste discurso poderia até ter sido proferido pelo Papa Francisco. João Paulo II fala da importância da família, do valor da vida, critica o aborto e, sem voltar a referir as divisões na Europa, lamenta a crise económica que causa desemprego e rouba a dignidade aos trabalhadores e deixa muitas pessoas na pobreza.

Do centro da Europa com a Europa no centro
A João Paulo II sucedeu um dos seus mais próximos conselheiros, o Cardeal Ratzinger.

O alemão mostrou imediatamente a importância que daria à Europa e à sua (re)evangelização com a escolha de nome: Bento, em memória de São Bento de Núrsia, co-padroeiro do Velho Continente, cuja rede de mosteiros ajudou a salvaguardar a cultura europeia em tempos difíceis.

Bento XVI nunca visitou as instituições europeias, mas manteve a Europa sempre bem no centro das suas preocupações. Em 2005, por exemplo, lamenta que, "na hora do seu maior sucesso, a Europa parece ter ficado vazia por dentro, paralisada por uma crise que lhe ameaça a vida e dependente de transplantes". Mais tarde, num discurso à delegação parlamentar do Partido Popular Europeu, saúda a importância dos valores cristãos para o continente.

"O vosso apoio pela herança cristã pode contribuir significativamente para a derrota de uma cultura, que já está bastante espalhada na Europa, que relega para um segundo plano subjectivo a manifestação das convicções religiosas. As políticas edificadas sobre esta fundação não só implicam o repúdio do papel público do cristianismo, mas de forma mais geral excluem qualquer relação com a tradição religiosa da Europa, que é tão clara, apesar das suas variações, e assim ameaça a própria democracia, cuja força radica nos valores que promove".

Bento XVI resignou em 2013. No imediato os seus esforços não parecem ter tido sucesso, embora estas realidades não sejam mensuráveis a curto prazo. Foi durante o seu pontificado que o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi legalizado em diversos países (em Portugal quase imediatamente depois da sua visita de 2010).

Sucedeu-lhe o Papa Francisco, o primeiro em vários séculos a vir de fora da Europa. Em Roma existem agora prioridades aparentemente diferentes. Em dois anos de pontificado Francisco foi tantas vezes ao extremo-oriente como à Europa (fora de Itália).

Mesmo que se considere a ida à Turquia como uma visita europeia, é de realçar que, das três visitas que faz fora de Itália, duas são a países de maioria muçulmana – Albânia e Turquia e a única a uma região tradicionalmente cristã – França (Estrasburgo) – é propositadamente desprovida de qualquer carácter estritamente religioso.

Resta agora ver que mensagem leva Francisco para os eurodeputados e conselheiros europeus, numa visita muito breve mas que está a captar as atenções.