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Reportagem multimédia

José Marreiros. Um coxo que é "um touro de força"

24 jul, 2015 • João Carlos Malta (texto) e Joana Bourgard (fotos)

É um dos nadadores mais emblemáticos das provas de natação master portuguesa. Há seis anos, tinha 140 quilos. Agora, tem medalhas ao pescoço. Tudo com uma "perna às costas", confidencia, rindo. Aquela que lhe falta desde os 12 anos.

José Marreiros. Um coxo que é "um touro de força"
As almoçaradas com clientes faziam parte do menu diário. Já o desporto estava fora da lista de um comercial que só tinha tempo para os negócios. E como nestas coisas não há milagres, a vida encarregou-se de acrescentar peso ao corpo de Zé Marreiros. Chegou aos 140 quilos. E chegou também àquele ponto em que a porta do hospital com seta para as consultas de obesidade passou a ter sentido obrigatório. Até que decidiu literalmente mergulhar no problema. A natação mudou-lhe o corpo. E a vida.

Agora, quase a completar 70 anos, é uma das figuras mais carismáticas da natação master em Portugal (competições em que participam atletas com mais de 25 anos) e até já representa o país no estrangeiro. A Sardenha, em Itália, é o próximo destino deste atleta que aos 12 anos, num acidente com um autocarro, ficou sem uma perna.

O desafio de nadar 5,5 quilómetros em mar está à altura do tamanho da dedicação que o leva todos os dias a chegar às 7h00 na piscina do Sport Algés e Dafundo. Sozinho ou acompanhado por colegas, são duas horas a fazer voltas. Para lá e para cá.

Mas o dia começa duas horas antes, às 5h00, quando se levanta da cama, em Benfica. O pequeno-almoço está preparado de véspera. As muletas estão a postos. Está tudo pronto para arrancar rumo ao autocarro e aos quase nove quilómetros que o separam de Algés.


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Contar azulejos
Até pode parecer difícil, mas isso dilui-se depois de ouvir uma declaração de onde salpica amor de um "contador de azulejos", expressão que os nadadores usam quando se referem aos treinos de natação e à monotonia associada.

"Hoje faço a minha vida toda em função da natação. De há uns anos a esta parte e até poder aqui andar vai ser assim, tenho o meu dia programado em função da natação. Até que possa nadar não vou largar isto. Já faz parte de mim". Palavra de nadador.

É o primeiro a chegar ao portão da piscina, todos os dias, conta-nos. Mas nem precisava de o fazer, porque é a primeira coisa que Severino Telo, de 76 anos, responsável por abrir o complexo desportivo, refere quando se lhe pergunta por Marreiros.

"Venho um pouco antes das 7h00, mas quando chego ele já cá está. Já lhe disse que qualquer dia lhe dava uma chave e que ele abria o clube. É uma pessoa impecável", resume Telo.

Meia hora depois, já ele anda de um lado para o outro. Vai interromper as 120 voltas que faz diariamente, a base das medalhas que se têm sucedido nas provas em que quase todos os fins-de-semana participa de Norte a Sul do país, para contar a sua história.

Passa em revista os momentos mais significativos da ligação com a natação, que começaram há seis décadas com as travessias entre a Trafaria e Algés (o feito chegou às parangonas do "Diário de Notícias"). Mas logo a conversa salta para a curiosidade de perceber como é que a falta de uma perna o limita. Como o condiciona.

Errado, errado, errado. "Não considero que seja uma limitação porque vivi desde sempre assim". Essa normalidade é tão natural que passa para fora.

"Os outros também não olham para mim assim. Isto serve de brincadeira, e dá origem a comentários do tipo: 'Perdi com um coxo'", diz Zé, entre risos.

Língua afiada e o amigo Tone
Ele é conhecido como uma das figuras mais bem-dispostas do circuito master de natação. Tem sempre uma piada na ponta da língua. Muitas das vezes, é ele mesmo a vítima do seu humor mordaz.

"Eu digo aos outros: 'Vocês vão com calma que isto faz-se com uma perna às costas. Antes das provas também digo aos meus colegas: 'Não vão muito depressa que depois têm de esperar por mim'", relata.

E conclui: "Tenho de levar isto a brincar ou não estava a ser honesto comigo próprio".


Marreiros é a "estrela da natação das águas abertas portuguesas". Foto: Joana Bourgard/RR

O mesmo espírito tem Tone, ou António Bessone Bastos, atleta olímpico e que se distinguiu em múltiplas modalidades. Há seis anos, ao saber que Marreiros fazia umas provas de águas abertas no circuito do Algarve, convidou-o para se juntar à equipa campeã da modalidade em masters, o Sport Algés e Dafundo.

Fala-se com Bessone e ele arranca logo para uma demostração de carinho com o amigo Zé. "Até tenho uma piada que só se faz com figuras que se respeitam e que gostam uma da outra. No meu tempo, tinha um treinador que se chamava Yocochi, era o japonês. Agora nos masters, não temos o Yocochi, temos o Yocoxo. Ele é um touro de força." A gargalhada sonora e sentida fica a ecoar.

Esqueçamos então a limitação, como Zé já há muito tempo fez. Passemos aos imensos feitos deste vencedor e vamos dar a palavra a Vítor Mavioso, seccionista da equipa, e também multicampeão no escalão em que compete.

Vítor viu algo em que não acreditaria se lhe tivessem contado. "Lembro-me de uma prova que nunca pensei ser possível ele conseguir. Nadou contra a corrente", começa a relatar.

"Ele tem uma vontade férrea. Vi-o baixar a cabeça e fazer 200 metros até à meta. E pensei: 'Isto é de uma pessoa que tem uma força que vai além do físico'."

Por fim, remata: "A cabeça leva-nos a sítios que nunca pensámos chegar. A imagem que tenho é esta, ele desafia qualquer desafio. É grande e torna todos os desafios na água pequenos."

"O que é que fico a fazer em casa?"
A saúde, ou a necessidade de a manter, é o motor da motivação de Marreiros. A que mais tarde se juntou a vontade de competir.

"Sim, agora a competição já é importante. Há sempre os camaradas que aqui chegam e mandam umas bocas. Dizem-me: 'Não nadas nada' [risos]. E a gente tenta superar. A competição? O que é que fico a fazer em casa?". Responde no fôlego a seguir: "Nada, até podia descansar mais, mas não me resolvia o problema".

E para ele não há nada mais satisfatório do que uma prova de águas abertas, competições que se realizam em mar e no rio. Daquelas bem difíceis. Imagine cinco quilómetros, que para ele valem 1h45 a nadar. De repente, a chuva começa a cair e, como se não bastasse, inicia-se uma trovoada.

"Há relâmpagos e só se vê o canoísta [que faz o apoio à prova] e depois não vemos mais nada. É água por cima e por baixo", relata.

A conversa com Arseni Lavrentiev, nadador que nasceu na Rússia mas representou Portugal em dois Jogos Olímpicos em natação nas competições de águas abertas, é uma espécie de prova dos nove sobre o que representa este esforço de Marreiros.

Arseni está na piscina do Algés três vezes por semana, onde é instrutor, e não tem dúvidas ao falar do nadador que está quase a completar 70 anos. "Enquanto muitos ficam no sofá a ver televisão e a arranjar desculpas, ele está cá sempre a lutar para conseguir os melhores resultados e a baixar os tempos. Fazer as travessias que ele faz, e ele já fez várias de cinco quilómetros, que valem entre 1h30 e 2h00 a nadar de seguida, é duro. Muito duro."

Juras de amor com sabor a cloro
É esta irrequietude e vontade de não parar que já levou Zé a muitos lados. Para quem não tem carro, a forma como não falha uma prova, seja em Viana do Castelo ou em Loulé, não deixa de impressionar os que o rodeiam. E neste Verão vai levá-lo ainda mais longe. Itália é o destino.

O nadador Marco Vantaggiato, italiano radicado em Portugal que nada pela equipa do Litoral Alentejano, vai ser o companheiro de viagem.

O contacto surgiu no início deste ano no Open de Inverno que se realizou na Madeira. Um nadador vindo de Itália, também ele com uma deficiência motora, rendeu-se às qualidades desportivas, mas também à simpatia de Zé Marreiros.

Marco conta: "É impossível não conhecer o Marreiros. Ele é a estrela da natação das águas abertas portuguesas. Foi assim que o apresentei à organização em Itália."

Esta será apenas mais uma paragem para Marreiros, que já jurou devoção eterna à natação. Até que os braços o impeçam, a perna não deixe ou o coração não queira. Pelo caminho, e passados seis anos desde que decidiu deixar assados e fritos para segundo prato, já conseguiu pelo menos uma coisa.

"Quem me conheceu há seis anos diz que não sou a mesma pessoa em termos físicos", lembra. Mas não foi a única mudança, também ganhou uma companheira para o resto da vida. A água. Doce, salgada ou com um travo a cloro.