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Entrevista a Sollari Allegro

"Houve mortes nas urgências que podiam ter sido evitadas"

23 jan, 2015 • João Carlos Malta (texto) e Joana Bourgard (vídeo)

Com uma retriagem, algumas das mortes nas urgências dos hospitais nas últimas semanas podiam ter sido evitadas. A convicção é do presidente do Hospital de Santo António.

"Houve mortes nas urgências que podiam ter sido evitadas"
Há casos nas mortes que ocorreram nas urgências dos hospitais nas últimas semanas que com uma nova retriagem podiam não ter acontecido. A convicção é do presidente do Hospital de Santo António, Sollari Allegro. Este médico fala ainda dos anos da troika e das suas consequências. Há quem não esteja a comprar medicamentos por falta de dinheiro.

As mortes nas urgências hospitalares nas últimas semanas voltaram os portugueses novamente para a discussão sobre a qualidade dos serviços públicos de saúde. Em entrevista à Renascença, o presidente do Centro Hospitalar do Porto (junta o Hospital de Santo António, a Maternidade Júlio Dinis e o Hospital Maria Pia), Sollari Allegro, considera que muitos teriam morrido na mesma mais tarde, mas houve casos em que uma retriagem poderia ter salvo a vida.

"Estou convencido que, dos casos [de doentes] que morreram, a maioria ia falecer na urgência mais tarde. Outros podiam ter sido retriados e provavelmente não morreriam", explica.

Por isso, diz que há que introduzir medidas correctivas no sistema de triagem, sobretudo para os doentes "amarelos", de gravidade intermédia, o grupo maior.

Ouvido de fora, o debate sobre a saúde em Portugal parece uma discussão entre dois mundos, o do Governo e o dos utentes. O ministro da Saúde tem argumentado que esta foi a única área na função pública que aumentou o número de profissionais (quase 3.000 enfermeiros contratados). Como é que ainda temos situações em que há pessoas a esperar 20 horas em urgências e até morrer durante essa espera?
Aí há duas coisas: neste momento com o programa da "troika" houve uma grande dificuldade de contratar novas pessoas. As pessoas estavam habituadas a que nas instituições os conselhos de administrações propunham e contratavam à medida das necessidades. Outra parte do problema é organizacional, não tenho dúvidas de que a situação entre hospitais não é idêntica porque a organização não é idêntica. Depende da qualidade de quem administra. Na minha instituição houve problemas, introduzimos medidas correctivas: aumentámos o número de camas de internamento.

O problema dos hospitais é mais de gestão do que de falta de recursos?
É as duas coisas.

Mas qual é que prevalece?
Não generalizaria, mas há casos em que a gestão é excelente e outros em que é uma desgraça. Mas isso é como tudo na natureza humana.

As recentes mortes nas urgências, sete numa semana, com suspeitas de falta de assistência, podem ser consideradas normais?
Não. É evidente que não é. O grupo de doentes de gravidade intermédia – os amarelos [escala de Manchester] – é muito numeroso. Nesses hospitais em que há dificuldades em aceder ao contacto com o médico, eles esperam horas. Os amarelos não são todos iguais. É preciso estabelecer um sistema de retriagem, garantindo que o doente amarelo que ao fim de uma hora não esteja visto seja visto para perceber o que se passa e se pode ou não esperar.

Este sistema de triagem não é melhor?
Não responde completamente. Estabelece limites que não conseguimos cumprir. As instituições têm de se adaptar a isso e criar sistemas para retriar doentes. Estou convencido que, dos casos [dos doentes] que morreram, a maioria ia falecer na urgência mais tarde. Outros podiam ter sido retriados e provavelmente não morreriam.

Estamos mais susceptíveis a casos destes?
Estamos. Porque quando há um grande acumular de doentes na urgência nem sempre é fácil.

Mas isso sempre aconteceu?
Sim, este ano o pico foi mais intenso do que nos últimos. Não me lembro de nenhum ano assim. Normalmente no Inverno abríamos camas adicionais. Tínhamos uma enfermaria destinada a isso e, quando chegávamos a estes picos, abríamos a enfermaria e colocávamos os doentes em excesso. Este ano abrimo-la com mais 24 camas e temos mais 12 à espera. Isto quer dizer que há mais doentes, eles estão mais velhos e a permanência média cresceu. Os doentes mais velhos demoram mais a melhorar.

Qual a solução?
Aumentar o número de camas transitoriamente.

Todos os hospitais o podem fazer?
Têm de se adaptar para terem zonas tampão e fazerem face a situações destas que vão acontecer outra vez.

É verdade que os hospitais não são obrigados a declarar as mortes nas urgências, nem a especificar se os doentes estavam em observação ou aguardavam para ser vistos?
Não, porque não há nenhuma razão para isso acontecer. Os médicos passam certidões de óbito onde põem o motivo. Mas não há nenhuma obrigação de colocar se foi na medicina B ou na urgência. Não há nenhuma obrigação legal.

Mas para podermos escalpelizar melhor se houve ou não falha, isso não seria necessário? E assim perceber quando há um conjunto de mortes nas urgências, como este, se ele é normal ou anómalo?
Isso terá de ser uma vontade política. Se o Ministério da Saúde nos mandar fazer nós fazemos.

Qual é a sua opinião?
Pode ser feito, mas não o faria agora. Deixava passar a crise porque há um lado emocional que ainda está à tona e que não ajuda a melhorar nada. É preciso é prever e fazer com que as coisas corram bem e não se voltem a repetir.


A crise fez Sollari Allegro melhorar a sua capacidade de gestão. Encarregou-se de acabar com os "clubezinhos" que os portugueses muitas vezes criam. Foto: Joana Bourgard

O avolumar destas situações e a agitação mediática em relação a este tema não favorece o sector privado?
O privado vive muito das ineficiências do sector público que são resultado de uma rigidez legal muito grande. Não podemos dar incentivos, não podemos fazer certas coisas que os privados fazem (contratar, criar áreas próprias) porque não existem elementos legais. Com o programa da “troika” houve uma grande concentração de poder nos organismos centrais. Os conselhos de administração têm muito pouco poder. Muito pouca capacidade de responder às necessidades.

Parece-lhe uma prática normal pagar 720 euros ao dia a um médico para suprir uma necessidade de um hospital como aconteceu no Amadora-Sintra? Já o fez também?
Qual é a alternativa? Há médicos que fazem por 500 ou 400 euros? É um problema de mercado e com valores inferiores não arranja ninguém que queira fazer. As pessoas têm que entender que pelo volume de trabalho e pela agressividade das situações clinicas que aparecem, nem toda a gente quer fazer urgências.

Já teve de recorrer a estes serviços por este valor?
No Porto, recorremos às empresas de prestação de trabalhos e pagamos aquilo que a lei determina, 30 euros à hora.

A percepção geral é que os cuidados de saúde estão mais caros e a qualidade dos serviços à população é menor. Sentem isso ou é uma ideia errada?
Não tenho essa percepção, mas eu estou do lado de dentro.

Mas justifica-se que o utente a tenha?
Aquilo que ficou mais caro para o utente foram as taxas moderadoras. E é evidente que para uma pessoa do meu nível económico isso não tem expressão, mas para quem ganha 500 euros pagar 20 euros de taxa moderadora tem significado. Mas a medicina em si não está mais cara.

Esta crise obrigou a crescer como gestor?
Claro, uma crise ajuda-nos a crescer. Não é na abundância.

Onde estavam as grandes ineficiências do Santo António?
Têm a ver com o passado e com a pulverização de responsabilidades, uma tendência muito portuguesa para criar clubezinhos. A necessidade de criar grandes áreas trouxe uma grande alteração na prestação do hospital.