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Reportagem

A fronteira da solidão

09 jun, 2014 • André Rodrigues

Em Castro Laboreiro, o sossego dos dias é marcado pelo isolamento de quem vive cercado de granito. Já não há crianças nem escolas. O médico vem de Espanha, uma vez por semana, e atende na farmácia, porque já não há centro de saúde. E os telemóveis mal funcionam. Aqui, tudo é longe demais.

A fronteira da solidão
Em Castro Laboreiro, o sossego confronta-se diariamente com o isolamento de quem vive cercado pelas austeras montanhas de granito da serra da Peneda. Já não há crianças nas ruas, as escolas fecharam. O médico vem de Espanha uma vez por semana. Atende na farmácia porque já não há centro de saúde. O mais próximo está em Melgaço, a 26 quilómetros. A caixa multibanco também. Os telemóveis mal funcionam. Aqui tudo é longe demais.

Quem sobe a Serra da Peneda para Castro Laboreiro enfrenta um longo serpenteado de asfalto até lá chegar. A mais de mil metros de altitude, encontramos a vila das 40 aldeias.

Desde as últimas autárquicas - que ditaram a fusão com os vizinhos de Lamas de Mouro -, Castro Laboreiro passou a ser a maior freguesia do país. Mas já era há muito tempo uma das mais desertificadas. Aqui, estamos na última fronteira, em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês, com a Galiza mesmo ao lado. Os de cá afirmam com orgulho que este é o seu 'cantinho do céu'. Mas neste cantinho vive gente isolada e envelhecida.

"Eu toda a vida vivi cá", atira Isalina, uma mulher de 71 anos que, tal como a maioria das idosas de Castro Laboreiro, enverga o luto pela morte do marido, antigo emigrante em França, um dos muitos que abandonou a terra quando, após a II Guerra Mundial, as minas de volfrâmio deixaram de ser o sustento das famílias, nos tempos do contrabando. Um passado próspero cheio de memórias trazidas para um presente feito da vida árdua do campo. "Aqui vivemos todos dos animais e da lavoura", diz.

E já era assim na juventude. Nos melhores anos da sua vida, e não obstante todas as dificuldades, Isalina lembra que "éramos cerca de 20 raparigas, fazíamos bailes" no meio do monte. Uma alegria tão distante no tempo que se traduz num desabafo: "Hoje é uma tristeza, já não há nada disso". Os poucos jovens que vivem em Castro "só querem discotecas" e a vida da terra "já não é nada com eles", lamenta.

O queixume, no entanto, não rouba o sorriso a esta mulher de expressão simpática, baixa estatura e pronúncia mesclada de português e galego. Isalina será, talvez, das poucas viúvas de Castro Laboreiro que não está só. A filha, Leonor, acumula um 'part-time' num dos restaurantes da aldeia com as sementeiras e os animais. "É uma vida dura", diz. "Lá na cidade, andam todos mais limpos e próprios. Aqui, não sabemos o que são férias".

A terra dá trabalho o ano inteiro. E também dá o sustento que, em tempos difíceis, garante a sobrevivência básica imediata. Na honestidade de viver do trabalho e para o trabalho, Leonor não tem dúvidas: "Aqui só passa fome quem é calaceiro". Talvez por isso, a crise que, nos últimos anos, se tornou a constante no dia-a-dia seja, neste lugar, uma questão algo relativa, menos marcante, em comparação com o impacto que o fenómeno tem nas grandes cidades, onde quase todas as famílias dependem do comércio para abastecerem a despensa. "Aqui não vamos à loja nem para comprar legumes, nem galinhas, nem coelhos. Era o que mais faltava!", diz Isalina. Aqui tudo o que se come "é da nossa terra". Não há fome que bata à porta.

E os cortes na reforma? Isalina não tem grande razão de queixa. Recebe uma boa pensão de França, por causa do marido. Mas tem pena de "todos aqueles que levaram uma vida a trabalhar e agora não vão receber tudo a que tinham direito. É muito injusto", argumenta.

Entre brandas e inverneiras
Isalina e Leonor. Mãe e filha, uma vida em comum. Até na transumância, a tradição ancestral das terras de pastoreio que consiste na migração de casa consoante a altura do ano. Em Castro Laboreiro, quase todas as famílias têm, pelo menos, duas habitações que as defendem dos rigores do clima extremo. Nove meses nas inverneiras, na parte baixa e mais abrigada da aldeia, três meses nas brandas na zona alta. Entre ambas, a oscilação da temperatura pode chegar aos seis graus. No Inverno, é frio demais. No Verão, não raras vezes, os termómetros ultrapassam os 40 graus e o ar torna-se irrespirável.

Para Isalina e Leonor, a distância entre as duas casas é de pouco mais de um quilómetro. Transtorno? "Para mim, não é transtorno nenhum", responde Isalina. "Enquanto eu viver, vou sempre fazer isto". Leonor também: "Fazemos isto sem qualquer problema e estamos tranquilas em relação a isso. Os das cidades vivem na mesma casa todo o ano. Nós não. Já nos habituámos a isto".

Para estas duas mulheres, o sossego do lugar onde moram é tudo. Mas há muita coisa que faz falta por estas bandas.

O reverso da medalha
É na falta dos serviços essenciais que a crise se torna mais evidente em Castro Laboreiro. Em pouco mais de uma década, esta vila nos limites do concelho de Melgaço perdeu as escolas e o centro de saúde. Para remediar a situação, pelo menos uma vez por semana, um médico espanhol do centro de saúde de Entrimo, do outro lado da fronteira, vai à farmácia atender voluntariamente e gratuitamente quem precisa de uma consulta. Elsa é a funcionária da farmácia. Avia receitas e é, também, uma espécie de secretária do doutor Júlio.

"Uma vez por semana é muito pouco para uma terra com tantos idosos", diz Elsa. "Aqui, não há dia em que não haja uma situação em que o médico é necessário". E lá vem o doutor Júlio, qual 112 pronto a ajudar. É mais rápido, até, que o INEM "que vem de Melgaço, a 26 quilómetros, e a não menos de meia hora daqui".

Num caso de vida ou morte, "a pessoa morre", admite a funcionária da farmácia, que é um caso raro de juventude em Castro Laboreiro. De acordo com os cadernos eleitorais das últimas eleições europeias, "haverá pouco mais de 300 pessoas a viver em Castro Laboreiro", apesar dos mais de 800 inscritos. Dessas, "só dez, no máximo, são jovens", reconhece.

CTT na Junta e escola a 16 quilómetros
Há pouco mais de um ano, Castro Laboreiro quase perdia o posto dos CTT. Em protesto, a população cortou a única estrada que liga a freguesia à sede de concelho. A estação acabou mesmo por fechar, mas os serviços foram transferidos para um balcão na junta de freguesia, que funciona três horas por dia. É lá que se fazem os pagamentos das contas, que se recebem as reformas. Isso e pouco mais.

Crianças, nem vê-las. Elisabete Sousa, funcionária do posto de turismo e secretária da Junta de Freguesia, explica: "As poucas que temos aqui são obrigadas a ir à escola em Pomares". Desde o ano 2000 que o Ministério da Educação decidiu que Castro Laboreiro não tinha crianças em número suficiente para frequentar as seis escolas espalhadas pelo extenso território da freguesia.

Francelina é proprietária de um dos restaurantes de Castro Laboreiro e tem duas filhas na escola de Pomares. Todos os dias, sujeitam-se a mais de 30 quilómetros de estrada, entre ida e volta. No Inverno, "a preocupação é muito maior", diz. É que a neve bloqueia a estrada "e o autocarro não arrisca vir por aí acima para vir buscar as crianças". A solução? "Ou vai lá o meu marido levá-las de propósito ou, então, nem vão às aulas".

A todos os transtornos, acrescenta-se o cansaço das filhas, que "saem de casa muito cedo de manhã e só regressam já noite cerrada". Ficam, muitas vezes, "tão exaustas que nem conseguem fazer os trabalhos de casa".

Do jardim-de-infância ao quarto ano de escolaridade, é a Pomares que todos vão parar. De lá, os miúdos migram para Melgaço. Depois, chega a hora da universidade. Adultos para se fixar na terra? "Infelizmente, não", responde Elisabete, com o sorriso amargo de quem antecipa o definhar da terra que a viu nascer.

Vão resistindo os negócios do turismo e da restauração, o principal cartão-de-visita desta zona que beneficia da envolvente do Parque Nacional da Peneda-Gerês, mas que se debate com défices que, não sendo tão prioritários como os serviços essenciais, condicionam o dia-a-dia de quem cá vive ou visita a aldeia.

Sem telemóveis nem multibanco
Das três operadoras móveis nacionais, só duas funcionam mais ou menos bem e não em toda a freguesia. E o multibanco "só em Melgaço", diz Fernando, dono de um hotel que também é restaurante e café. Este empresário de hotelaria diz que o estebelecimento "até nem trabalha mal", mas "nota-se uma quebra no poder de compra" dos clientes, "que são, sobretudo, os espanhóis e os portugueses que viajam com cada vez menos dinheiro".

É aqui que a crise entra na conversa. Fernando procura empregados para trabalhar na recepção e no serviço à mesa. "Fala-se tanto de desemprego e eu não encontro ninguém que queira trabalhar. Alguma coisa não bate certo".

Vítor também entra na conversa. É cliente habitual e amigo do dono do hotel. Sempre que pode, vem de Salvaterra de Magos a Castro Laboreiro. É um amante da fotografia, da beleza natural e dos trilhos para as caminhadas. "Por isso, aqui juntei o útil ao agradável. Pena é que as nossas autoridades não estejam atentas ao potencial inesgotável de Castro Laboreiro".

Fernando concorda. Diz que o turismo em Portugal está viciado por lugares comuns. "No nosso país, o turismo é todo canalizado para as zonas mais evoluídas, como o Algarve. Nós, os pequenos, acabamos sempre esquecidos". Ou quase sempre. "Aqui só se lembram de nós quando é para pagar os impostos", desabafa.

Recomeçar no interior
Se a maioria das pessoas foge de Castro Laboreiro por causa do desemprego e do isolamento, Vítor e Diana vieram para cá, há dois anos, em busca de uma vida melhor. Ou, pelo menos, diferente.

Ele é natural de Alcobaça, ela é do Porto e foi na Invicta que se conheceram. "Eu trabalho em azulejaria há 14 anos, mas, nos últimos tempos, o volume de trabalho estava a diminuir bastante", começa Vítor. Até que conhece Diana, uma técnica de ilustração que nunca conseguiu emprego nem na sua área, nem em nenhuma outra.

Para este casal, é ilusória a ideia de que as oportunidades são um exclusivo das grandes cidades. "Temos a nossa pequena horta", afirma Vítor com orgulho. "E aqui aprendemos com as pessoas da terra a cultivá-la e a colher os frutos desse trabalho", conclui Diana com entusiasmo.

E ter filhos? Na resposta, multiplicam-se dúvidas e receios. A isso não é alheia a falta de serviços essenciais de saúde nas proxidades. Diana aponta culpas "ao Governo e ao poder local, que lavaram as mãos em relação ao que faz mais falta no interior". Mas também reconhece que "sem crianças não há evolução, sem evolução não há necessidade de serviços essenciais e sem serviços essenciais não há população".

À beira do fim?
O ciclo vicioso é difícil de ser estancado e está em linha com a tendência dos últimos 20 anos. Castro Laboreiro perdeu mais de mil habitantes nesse período. "Uns porque morreram, outros porque emigraram e já não voltam", lamenta Elisabete Sousa.

Se o êxodo a que se tem assistido não for travado ou compensado com gente nova, "daqui por 20 anos, os velhos já morreram". Restarão as casas de granito e os campos abandonados. Depois disso, quem virá para Castro Laboreiro? "Ninguém".