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"Porque são as pessoas más umas para as outras, porque se amam de forma tão louca?"

11 dez, 2013 • Matilde Torres Pereira

O cinema de Manoel de Oliveira expôs Luís Miguel Cintra à ambiguidade dos homens. O actor observou no realizador a urgência de questionar e voluntariou-se para diligenciar respostas: protagonizou 19 filmes de um cineasta inquietado com o mistério da vida.

"Porque são as pessoas más umas para as outras, porque se amam de forma tão louca?"

Um fez 105 anos, o outro tem 64. São mais de quatro décadas que os separam e foi há quase trinta anos que começaram a trabalhar juntos. Para Luís Miguel Cintra, Manoel de Oliveira é hoje um amigo e uma "referência moral". O actor, que fez 19 longas-metragens com o cineasta, lembra o primeiro filme que viu de Manoel de Oliveira, as conversas que tiveram sobre as mais profundas perguntas da vida e enuncia lições que foram ficando. "Ele tem uma atitude de inquietação perante a própria existência humana que é uma forma de amor à vida."


Como é que começou a sua colaboração com o Manoel de Oliveira?
Começou de uma maneira muito arrogante. Ele convidou-me duas vezes e eu das duas vezes torci o nariz. Bem me arrependo hoje em dia. Coincidiu com aquele período a seguir ao 25 de Abril em que toda a gente estava muito ocupada e eu achei que era mais importante estar a trabalhar nas campanhas do Movimento das Forças Armadas do que fazer o filme com ele. É engraçado, porque ele não desistiu. À terceira foi de vez e convidou-me para fazer o papel principal do 'Le Soulier de Satin' (O Sapato de Cetim), em francês. Esse filme foi uma ousadia da parte dele que lhe agradecerei toda a vida. Dele e do Paulo Branco, como produtor. Porque apostar num actor tão novo numa coisa de tanta responsabilidade, a falar uma língua que não é dele, foi muito ousado. Foi inesquecível o primeiro dia de filmagens com ele, porque há um grande monólogo em que estou atado a um poste, com muito aparato, muita figuração e filmou-se logo à primeira vez. Quando acabou, ele veio dar-me um grande abraço - estava muito contente - e nasceu aí uma admiração minha por ele enormíssima, não só como espectador, mas também como um colaborador. E transformou-se numa grande amizade.

Foi o Manoel de Oliveira talvez o responsável por conquistá-lo um bocadinho para o lado do cinema.
Sim. O Manoel de Oliveira é uma pessoa que encara o cinema não como uma profissão, mas como uma forma de vida. Fui aprendendo muitas coisas sobre a vida no convívio com ele. Da postura ética, sobre quais são os verdadeiros valores que contam. Ainda ontem lhe dizia que tinha respondido a uma pergunta de um jornalista sobre  o que é que para mim era mais importante de tudo nas várias coisas que tinha ouvido ou visto no meu convívio com o Manoel de Oliveira. Eu disse, 'olhe, se calhar é uma espécie de lealdade a si próprio: tenho a sensação que ele nunca fará uma coisa que não esteja de acordo consigo, uma coisa imposta ou uma coisa que seja mentira'. Ele disse-me um dia: 'É sempre verdade para mim, mas não sei se é verdade para os outros' e eu respondi 'mas isso existe?' e ele disse 'pois não, uma verdade que seja verdade para toda a gente não existe'. São conversas assim deste género que aparecem de vez em quando e que me têm ensinado muitas coisas.

Há algum filme dele que o tenha marcado mais que outros?
Ainda ontem escrevi uma dedicatória numa prenda que lhe dei e disse que a primeira coisa que vi dele foi o 'Acto da Primavera', que começa assim: 'No princípio era o Verbo'. Fiquei de boca aberta. De repente - também porque era muito novo - vou ao cinema e vejo que começa com umas árvores, com uns pastores no campo e depois aparece uma coisa teatralíssima, aquela representação da Paixão de Cristo pelos camponeses e tudo aquilo a fazer imenso sentido e com um gosto pelo que pode haver de verdadeiro, numa representação absolutamente falsa. A representação da Paixão com as pessoas a cantarem as frases, com uns fatos muito artificiais, e no entanto é como se fosse o próprio teatro da fé, por um lado, e por outro também do excesso, da generosidade dos corações, das atitudes extremas… Fiquei ali preso completamente àquilo, até porque já tinha de mim muito gosto por tudo o que fosse arte popular e porque tinha tido uma educação religiosa muito forte. Bateu-me em cheio no coração e nunca mais me esqueci disso. Há uns de que gosto mais, uns menos, mas gosto muito que seja sobretudo um percurso - o que conta não é aquele filme, é a atitude que passa de filme para filme. Ele está com imensa energia e com uma lucidez incrível.

No livro "Manoel de Oliveira - Histórias e revelações", disse que o vê como uma referência moral. O que quer dizer com isto?
É a noção de que como artista tem uma responsabilidade perante o mundo. Ele explicou-me isto de uma maneira muito simples e muito técnica: 'Sabe o que é que você faz quando eu o mando olhar para a câmara? Está a olhar para a sala. Porque depois, quando as pessoas estiverem sentadas a ver o filme, sentem que você está a olhar para elas e está a falar para elas'. É isso que o cinema faz - também se projecta e fala para as pessoas que tem à frente. Aí percebi que ele não pensa o cinema como uma coisa de expressão privada ou uma coisa confessional e muito menos como uma coisa que finge que é outra coisa que não é. Mesmo quando se faz ficção, há sempre um lado artificial escondido e ele não esconde. Para ele, o importante é que, quando faz um filme, está a falar ao mundo, o que em última análise é uma atitude política e de relação com o próximo.

Ao fim de 105 anos, acha que o Manoel de Oliveira conseguiu descobrir afinal o que é isto de existir, de viver?
Ele dir-lhe-á que não, que não se sabe, que é um mistério que não se sabe, mas não pensa noutra coisa. Agora pensar sobre o que é isso da vida, isso sempre foi assim desde o princípio. Este mistério da vida mistura-se com questões de natureza religiosa: são as dúvidas permanentes, numa vontade de chegar à verdade, sabendo que nunca se consegue chegar lá. Há uma atitude de inquietação perante a própria existência humana que é uma forma de amor à vida e isso acho que se sente em todos os filmes dele. Há ali uma permanente interrogação sobre o que é isso da vida: porque é que as pessoas agem assim? Porque são más umas para as outras, porque se amam de forma tão louca? É como se estivesse sempre a fazer essas perguntas. É uma coisa muito rara. Eu até tenho um bocadinho de vergonha às vezes de estar, como estou, com este discurso tão pouco comedido, mas tenho uma admiração gigantesca e desmedida por aquele senhor.

O próprio Luís Miguel Cintra também se debate com essas questões. Aliás, há pouco tempo encenou uma peça do padre Tolentino Mendonça, "O Estado do Bosque", sobre isso mesmo. São questões que de alguma forma devem também trazer alguma esperança...
É evidente. Mas mesmo assim, entre um e outro, acho que o Manoel de Oliveira diz que tem menos esperança do que eu. Não sei se tem ou não, mas ele muitas vezes me disse 'o ser humano é mau, é basicamente mau, a inveja é uma coisa terrível que está no coração do homem, o homem é mau desde o princípio dos tempos', mas no fundo com um desejo que o homem fosse bom. O ser humano é uma coisa absolutamente extraordinária. Daqui até a pessoa dizer que tem fé é um salto muito curto, ainda por cima a nossa religião é uma religião em que o dado fundamental é que Deus foi homem e isso é uma coisa muito importante. É através da humanidade que se chega a Deus.  

Sobre o Manoel de Oliveira, também disse que ele é um gigante, mas um gigante que carrega uma grande carga de solidão. Acha que este é o destino de todos os grandes homens?
Acho. Sem hesitação nenhuma. É indispensável. Ninguém dá um passo novo acompanhado - o passo só é novo porque ainda ninguém mais o deu. Já que estamos a falar de coisas relacionadas com a religião - há uma grande razão para ter esperança no Papa que nos apareceu. De repente, é uma pessoa completamente atípica e justamente porque faz coisas novas, tem uma força gigante. Finalmente alguém tem a ousadia  de mostrar coisas que são evidências para tantas pessoas, mas que a Igreja não teve coragem de dizer nem fazer. Dá-me alegria. A Igreja não precisava nada de ter poder - precisava de ter responsabilidade e de repente aparece um Papa que não liga nada às questões de poder. É uma razão de esperança, de que se progride sempre para melhor. 

Imagino que para as pessoas que rodeiam o Manuel de Oliveira haja quase a tentação de acreditar na ilusão de alguma imortalidade.
Sim, mas para mim não me passa pela cabeça. Acho que aquele homem nunca vai morrer. Já o vi dar tantas reviravoltas sobre si próprio e de estados de saúde muito débeis passar para imensa energia. Ontem estava óptimo. Estive em casa dele com ele e com a mulher e com dois dos seus filhos e estivemos a conversar muito bem, depois veio o fisioterapeuta fazer a terapia para ele se mexer. Há uma vitalidade nele muito grande, uma alegria de viver e muito parecida com a de uma pessoa muito nova. Tem um lado infantil muito bonito. E tem-me dado grandes lições. Quando veio cá o Papa anterior, fui convidado para estar naquela sessão em que os artistas e os intelectuais o foram cumprimentar e eu resolvi não ir, porque achava que não estava de acordo com cerimónias daquele tipo. Mas o Manoel de Oliveira foi e eu escrevi-lhe depois uma carta a explicar porque é que não tinha ido. E ele responde-me assim: 'Lembre-se da frase do Padre António Vieira, 'terrível palavra é o 'non''. Ele acha sempre que dizer que não é pior que dizer que sim, porque o sim dá a hipótese de que qualquer coisa aconteça. E em relação à minha não ida, deu-me esta seguinte resposta muito divertida: 'Olhe, alguma coisa de bom aconteceu na sua recusa, é que me escreveu uma bela carta".