25 out, 2017 - 19:11 • Elsa Araújo Rodrigues (texto e fotos)
Do outro lado da rua do quartel dos bombeiros voluntários de Leiria, há um pinhal. Não pertence à mata nacional que ardeu. Ali os pinheiros continuam intactos, as copas verdes. Ao contrário de outras. Muitas outras, negras, que estes homens e mulheres viram no terreno.
Uns dias depois, à primeira vista, nada do quartel lembra o grande fogo de 15 e 16 de Outubro. Carros, carrinhas, camiões estão alinhados no parque e brilham, vermelhíssimos. Não mostram sinais do combate ao fogo que destruiu 80% do Pinhal de Leiria.
Só no fim da visita percebemos os danos causados pelas chamas: um dos carros da corporação ficou completamente destruído pelo fogo. A carcaça está atrás do quartel, completamente tapada com uma rede verde. "Para não estar à vista, para não lembrar", diz Tiago Ferreira, adjunto de comando.
Dentro do quartel, reina a tranquilidade. Estamos num final de manhã de um dia de semana, igual a tantos outros. A corporação é voluntária e, por isso, em dias em que não há urgências, são os funcionários da associação humanitária que fazem o trabalho diário, como o transporte de doentes não urgentes, as formações de primeiros socorros ou a gestão corrente.
É a tratar destes assuntos que encontramos Tiago Ferreira no escritório do primeiro andar do quartel, sentado à secretária, de telefone na mão. Tem "coisas para resolver" e mostra reticência em falar – "não estou fardado nem nada", justifica. Em teoria, não devia estar ali, mas, hoje, é o responsável pelo quartel (o comandante Luís Lopes não está).
Nem pena nem culpa
"Os bombeiros não são heróis", começa por dizer Tiago Ferreira. "Quero que as pessoas tenham essa noção, de que os bombeiros não são heróis.”
Mede as palavras, mas o que diz não está à altura do que fez. Tiago caiu no combate às chamas – teve de levar injecções para as dores. Confessa que devia estar em repouso e não no quartel porque "a zona lombar não ficou com muita saúde e vai demorar a recuperar".
Caminha devagar e vai passando a mão pelas costas, mas não desarma. É telegráfico a descrever o incidente, ao qual não voltará durante a conversa. "Eu gostava que um dia as pessoas vissem os bombeiros como qualquer outra profissão. Isso é fundamental porque cada vez mais há a tendência a que as pessoas tenham pena dos bombeiros," afirma. Tiago não quer os votos de pesar nem a arca das culpas.
"Quando existem situações de uma grande envergadura, como esta dos incêndios, tende-se a dizer: a culpa é dos bombeiros, não vêm cá os bombeiros, eles não querem trabalhar, eles estão parados.” Até pode acontecer, admite Tiago, "mas são situações muito diminutas”.
Tiago alude aos relatórios pedidos pelo Governo no rescaldo da tragédia de Pedrogão Grande: voluntarismo e falta de confiança na estrutura; necessidade de mais e melhor qualificação dos agentes que combatem os fogos no terreno; erros vários (de percepção, no imediato, da gravidade dos incêndios e também no combate inicial às chamas). Palavras duras que se lêem nas duas análises ao que aconteceu e ao que falhou no terreno.
No fim da longa lista de problemas identificados ao nível da acção, a solução apontada pelos especialistas: profissionalizar os bombeiros já. Porque a análise não poupa ninguém, dos decisores aos agentes no terreno – incluindo os bombeiros.
Tiago recusa rótulos. "Todos os bombeiros, sejam eles voluntários ou profissionais são profissionais, efectivamente, na acção. Sem dúvida", responde. Não aceita a acusação de falta de formação dos bombeiros. Diz que “o tempo para ir a todas as formações necessárias” ajuda a explicar a falta de recursos humanos.
Adjunto de comando dos Bombeiros Voluntários de Leiria há sensivelmente dois anos, Tiago já é bombeiro há 15. Tem apenas 30 anos e já passou metade da vida no quartel, primeiro como voluntário e, desde há três anos, como funcionário da associação humanitária.
Antes trabalhava na área da restauração e da gestão hoteleira, mas decidiu ser "bombeiro a tempo inteiro". Mudou de profissão porque gosta de ser bombeiro e gosta de ajudar o próximo.
Pensa que a profissionalização poderá ajudar a mudar a forma como a população olha para os bombeiros voluntários e deixa um pedido ao executivo. "Tem de existir uma intervenção do Governo para criar uma força conjunta [que inclua bombeiros e agentes de protecção civil]. Porque falamos dos incêndios, que nesta altura do ano é o que tem mais destaque. No entanto, [os incêndios] são só 5% da nossa actividade operacional durante todo o ano.”
Do Conselho de Ministros extraordinário de 21 de Outubro ficou a garantia da "transformação do processo de especialização no combate aos fogos", mas ainda sem medidas concretas no que à profissionalização diz respeito.
Sim à profissionalização e com comando único
Na corporação de Leiria são muitas as vozes que querem ver a carreira reconhecida. João Teixeira tem 32 anos e é bombeiro há 18. Não se imagina a fazer outra coisa: estar sempre disponível já faz parte da sua rotina. No dia 15 de Outubro, o domingo do grande incêndio, estava de folga no Algarve. Não hesitou em regressar. A "casa" estava a arder. "Quando cheguei deparei-me com um cenário dantesco. Já tinha visto, presenciado alguns cenários semelhantes… Mas quando é na nossa casa é muito diferente.”
João chegou horas depois da ignição, já não havia meios disponíveis para a frente de combate. Estava no quartel e ajudava com a logística, mas não conseguia evitar a frustração.
"Como não estava em combate, para mim foram horas de autêntica impotência. Já nem vou falar naquilo que os colegas presenciaram porque foi muito mais de perto. Tive oportunidade de fazer o ‘revisária’ [vistoria à área ardida] de Pedrogão, Ervedeira, Grou, Coimbrão... Vi o perímetro que foi pelo menos ali naquela área. E era horroroso", descreve João.
Os adjectivos não chegam para caracterizar o que viu e sentiu nos muitos hectares queimados por onde passou. Os relatórios voltam a ser tema na conversa. João compreende o que se diz e escreve, mas "sem ovos não se fazem omeletes". "Não conseguimos ir a todo o lado. Chega-se a uma altura em que os meios, tanto humanos como materiais, são escassos”, reconhece. “Não temos qualquer hipótese. Se nós temos uma viatura que leva cinco elementos mesmo que tivéssemos uma corporação com mil elementos, não iam chegar.”
O reforço da profissionalização dos bombeiros, saído do Conselho de Ministros, mereceu sintonia nas reacções. Profissionais e voluntários aplaudiram a iniciativa. Os bombeiros profissionais defendem a medida com o argumento de que o voluntariado não deve servir de base à estrutura da Protecção Civil. Os voluntários relembram que o alargamento do número de equipas profissionais é uma reivindicação antiga que agora os relatórios admitem ser necessária.
João Teixeira concorda com a profissionalização, mas questiona em que moldes irá acontecer e defende que a mudança deve alargar-se a toda a estrutura de comando. "Os bombeiros portugueses deviam ter um comando único, que não existe. E não deveriam se esquecidos no Inverno, como são. Porque fazem muito mais trabalho no Inverno, ao contrário do que as pessoas pensam."
16 horas a atender pedidos de ajuda
Seja qual for a estação do ano, os telefones do primeiro andar não param de tocar. A pequena sala com vista para o parque de viaturas é a linha da frente da resposta aos pedidos de ajuda. Do outro lado, a voz de Elodie Ribeiro, 31 anos. É operadora da central de telecomunicações e é a primeira a tentar dar resposta. No fim-de-semana do incêndio esteve de serviço durante 16 horas.
"Não foi uma noite fácil", recorda. O telefone não parava de tocar, as pessoas "queriam tudo e mais alguma coisa". Entre pedidos de ajuda, manifestação de disponibilidade para se juntarem ao combate e ofertas de bens para os bombeiros, Elodie rastreou e encaminhou todas as chamadas.
A tensão é diferente da que se sente no teatro de operações, mas nem por isso deixa de existir. "É impossível nós estarmos lá em cima e não haver stress. Temos pessoas a pedir ajuda, temos de ver onde é que os meios andam, tentar enviar os meios para os locais correctos... Rastrear como deve ser as chamadas."
Muitas vezes, são as críticas ao trabalho dos bombeiros que chegam ao ouvido. "Temos que aceitar as opiniões. É opinião pública, temos que aceitar, quer gostemos ou não da opinião da pessoa”, considera. Na madrugada de 15 para 16 de Outubro, "por acaso não aconteceu isso". Uma pequena alegria que não compensou o dia negro. Elodie sabe que as pessoas esperam mais dos bombeiros, o que explica as críticas. Mas o garrote está a montante.
"Não podemos fazer mais porque não temos mais", desabafa. Elodie não sabe como resolver o problema, mas sabe o que gostaria que acontecesse no futuro. Profissionalização? "Sim! Mas sem se perder o espírito voluntário.”
"A nossa vontade é vir para aqui”
Espírito voluntário é o que não falta à Associação Humanitária Bombeiros Voluntários de Leiria. É uma das corporações mais jovens e qualificadas do país. "A média de idades ronda os 35 anos", precisa Tiago Ferreira, adjunto de comando. E em mais de 130 elementos, "70% têm o ensino superior".
Outro factor distintivo é a proporção de elementos femininos. "Entre 35 a 40% são mulheres", contabiliza Ana Magalhães, que assegura que a percentagem pode aumentar no futuro próximo. "Quase todas as novas inscrições para novos recrutas são de raparigas.”
Ana Magalhães, 30 anos, é bombeira desde 2004. Começou como voluntária, hoje é chefe de piquete e funcionária da associação a tempo inteiro há dois meses. Antes era farmacêutica. Foi a paixão pelo combate aos fogos que a levou a trocar a bata branca pelo dólman vermelho.
Sente saudades da farmácia, mas admite que já "não trocava". E explica porquê: "no início do Verão ainda apanhei o grande incêndio de Pedrogão e estava a trabalhar. E é muito frustrante ter que estar a trabalhar quando sabemos que precisam de nós aqui [no quartel]. E que, efectivamente, a nossa vontade é vir para aqui e fazer aquilo que nos está no sangue."
Ana acredita que mais do que um trabalho ou emprego, ser bombeiro é também uma vocação – que deve ser vivida de forma profissional. Concorda com a profissionalização das corporações porque é preciso que os bombeiros sejam realmente considerados “como profissionais”.
"Ainda há muito aquela ideia que o bombeiro não tem formação, aquilo é só agarrar na mangueira e na agulheta e ir lá apagar", considera. “Isso não é verdade, temos muita formação, temos muitas horas de instrução”, acrescenta. O que falta é o reconhecimento da profissão, "mas sem nunca perder o espírito do voluntariado, porque querendo ou não, faz toda a diferença."
Bombeiro no trabalho, mecânico no quartel
Apesar da importância do voluntarismo, acumular competências pode ser uma mais-valia para as corporações. João Reis tem 31 anos, é bombeiro há 13 e mecânico quase desde que se conhece. Não precisa sair do quartel para exercer as duas profissões porque "diariamente estas viaturas precisam de manutenção, precisam de estar sempre prontas a sair".
"No trabalho, no dia-a-dia, é preciso ser um bocadinho bombeiro no trabalho e um bocadinho mecânico no quartel", reflecte João.
É a favor da profissionalização dos bombeiros, mas não a qualquer custo, nem de "qualquer maneira". "Ainda tem de ser um conceito bem definido e traçar muitas ‘guidelines’. Porque a formação já está cá, mas é preciso que encarem ser bombeiro como uma profissão", refere.
Sem frieza, diz que trata de pessoas e de carros quase com o mesmo empenho e paixão. E como seria se tivesse de escolher? "Essa é uma pergunta com rasteira”, responde João a sorrir. "Não vou dizer depende da remuneração. Não vou falar na remuneração, mas é um facto que também temos que pensar nisso. Mas vou dizer: a paixão real está nos bombeiros e está nos carros. E as duas complementam-se uma à outra. Por isso era um bocadinho difícil ir decidir. Ser mecânico já era um sonho de criança. E ser bombeiro veio acrescentar, acentuar e ajudar-me a complementar as duas."