O "terrível" último dia do presidente Agostinho

O "terrível" último dia do presidente Agostinho

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17 out, 2017 - 19:00 • Elsa Araújo Rodrigues , Joana Bourgard (fotos)

Agostinho Neves despediu-se da junta de Ventosa com uma tragédia. Quatro pessoas morreram devido ao fogo. Muitas casas continuam de pé, mas falta água, luz, rede de telecomunicações e televisão.

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Reportagem - Vouzela depois do 15 de Outubro - 17-10-2017 - Elsa Araújo Rodrigues

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Aldeias e povoados abandonados à sua sorte, sem electricidade e sem apoio. É assim que muitas freguesias do concelho de Vouzela, no distrito de Viseu, acordaram para os dias seguintes ao fogo deste domingo. Ventosa é uma dessas freguesias. Tem cerca de 18 quilómetros quadrados e “não há sequer um quilómetro quadrado que não tenha ardido”, calcula Agostinho Neves, que, na segunda-feira, deixou de ser presidente da junta de freguesia local.

Depois de 28 anos no cargo, despede-se da presidência da junta de freguesia num dia terrível: Ventosa são 18 povoados “dispersos na montanha”, o fogo chegou a todos eles e morreram quatro pessoas, todas em Vila Nova.

Ali o silêncio incomoda. O povo não está preparado para falar do que aconteceu. A rua empedrada que leva à habitação onde morreram três das quatro pessoas de Vila Nova está cortada ao trânsito. No terreiro da casa pouco ou nada ficou de pé. Salvou-se o espigueiro e algumas abóboras. Uma patrulha da GNR guarda o local, os poucos vizinhos que se vêem aparecem às portas para dizer que os corpos ainda estão por ali.

Por respeito, incompreensão e dor, a aldeia parece quase sem vida. Apenas um grupo de cães à solta, o ruído omnipresente dos geradores e, claro, os carros de reportagem. Há mais jornalistas que pessoas – e as que aparecem não querem falar. O momento é de dor e dali a pouco será hora de ir para a igreja velar a primeira vítima a ser enterrada.

Prazeres Figueiral é uma das poucas que fala, sem ter muito para dizer. A sua família mora numa das pontas da povoação e foram o marido e o filho que ajudaram a dar o alarme. O filho saiu de carro e buzinou pela aldeia, a acordar os vizinhos. Foi a população que fez o primeiro combate às chamas, os bombeiros tardaram a chegar e, quando vieram, “deitaram muita água, mas depois já não havia água”.

Parte da aldeia está destruída – sobretudo a zona alta. No terreiro negro pintado pelo fogo sobressai o cor de laranja. Ali um monte de abóboras meio assadas, acolá espigas de milho queimadas, os cactos que vergaram com a força do calor. As casas que ficaram de pé não têm electricidade. Os postes queimados são mais que muitos e, por enquanto, a energia vem dos geradores.

Prazeres Figueiral foi tratar dos animais logo que pôde. “As minhas ovelhas arderam todas”, conta. Com os olhos rasos de água, olha para nós e aponta a destruição em volta. Ainda não consegue acreditar no que aconteceu: “a gente via notícias más, quem é que havia dizer que nos ia passar pela nossa porta? Fui ver os meus animaizinhos, vim de lá doente. Tudo queimado.”

Sem água, nem explicações

No povoado mais acima, Gândara, o ponto de encontro é o café Santo António. A dona Celeste vai cumprimentando os vizinhos que entram e pedem café. A máquina está ligada desde cedo, mais tem trabalhado pouco. Ali até há electricidade, mas falta água nos canos.

O café da dona Celeste é o ponto de encontro da zona. Muitas pessoas juntam-se e contam como viveram o incêndio da noite de domingo

"Temos um problema muito grave”, diz Agostinho Neves. “A freguesia teve água ao domicílio muito tarde. O que quer dizer que íamos à serra buscar águas que serviam para o consumo em casa. Era uma rede domiciliária, mas entre aspas, que as pessoas tinham para se abastecer. E é muito longe a distância entre a serra e as próprias casas. Em média, são mais de dois quilómetros de tubos ao longo da serra, que abasteciam as águas. E agora os tubos estão destruídos”, explica o ex-autarca.

Os canos estão parcialmente queimados e a água está a chegar às torneiras (como às do café da dona Celeste, no centro da aldeia) de forma intermitente. É mais uma das coisas que faltam, numa freguesia dispersa e em que vale o apoio dos vizinhos e conhecidos.

Paulo Carvalho veio de Oliveira de Frades à terra onde nasceu ver como estava a família e os amigos. Enquanto espera pelo café, diz que não se lembra de ver uma coisa assim. “Não tenho explicações para dar – é tudo o que tenho a dizer”, atira. Já não tem casa nem terrenos na freguesia, mas tem familiares “com tristezas, com bens ardidos”.

Em Vouzela, os prejuízos estão à vista, mas não é o único concelho do distrito que ardeu. Paulo Carvalho descreve o que viu na zona onde mora, em Oliveira de Frades: “também não tem explicação. Começou em pinhais e em poucos minutos levou tudo à frente. Há aldeias, há casas destruídas, há aviários. Uma zona com mais de 3.600 operários e agora não se sabe o que fazer”.

Paulo Carvalho veio ver a família logo que soube das vítimas de Vila Nova. “Eram amigos, da minha idade, e vou daqui com o coração muito, muito magoado com o que vejo aqui na minha freguesia.” Os clientes vão entrando e saindo do café Santo António, à medida que Celeste começa a varrer as cinzas. “Agora é limpar o que o fogo deixou para trás.”

Passar o testemunho terrível

Em frente ao café os vizinhos conversam sobre o que se passou, e sobretudo, sobre o que aí vem. Ninguém se queixa de falta de apoio – afinal, a maior das casas continua de pé –, mas a falta de ânimo salta à vista.

“Ao fim de 28 anos de autarca e sendo hoje a tomada de posse, é um testemunho terrível e que me vai ficar na memória para toda a vida”, desabafa Agostinho Neves. Durante o fogo tentou ajudar como pôde, tentou acudir a todos os que lhe pediram ajuda. Chegou a ficar parado no meio do fogo em Casal Bom.

“Fiquei fechado com lume da parte de trás, a parte da frente ardia. E só há uma possibilidade nestes casos: é arriscar tudo. Rebentaram dois pneus, mas felizmente o carro é de tracção e consegui sair da aldeia e socorrer as pessoas”, conta. Apesar do perigo, diz que não foi herói: fez o que pôde e o que tinha a fazer “por solidariedade”. “Felizmente estamos aqui todos de saúde, mas mentalmente não”. Sabe o que o negro da paisagem vai demorar a sair da cabeça e do coração das pessoas.

"Estamos sem água, estamos sem luz, com animais mortos e infelizmente com uma tragédia humana, com cinco pessoas que morreram. É muito difícil, neste momento, repor tudo. As pessoas que ainda conseguiram salvar os animais depois têm outra tragédia: pisam fora da porta e não têm nada a não ser negro”, desabafa.

Lisete Neves, mulher de Agostinho, não consegue tirar os olhos da paisagem. Ainda está a tentar assimilar o que aconteceu, amparada no marido, e também na fé e na esperança.

“Sou uma pessoa católica e vou esperar que Deus nos ajude a ver crescer outra vez a vegetação. E espera por alguma ajuda que nos possam dar para pelo menos termos os bens essenciais para casa. Porque, de resto, não tenho nada. Fiquei com a casa e com o que tinha dentro de casa. Animais não tenho, desapareceu tudo. Vou esperar que o tempo nos dê alguma coisa mais. Porque, de resto... foi um inferno que eu vivi. Não sou capaz de explicar por palavras aquilo que eu vivi aqui. Não tenho mais nada a dizer. Vamos esperar, que melhores tempos virão.”

Comentários
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  • Manuel
    17 out, 2017 Nazare 22:16
    Lamento profundamente que os políticos que tanto defendem os trabalhadores estejam calados . Será que estas pessoas não sejam trabalhadores? O que reinvidicam para eles? Ou os trabalhadores que existem são so funcionários públicos,CTT,pt,e das grandes empresas?
  • José Carlos
    17 out, 2017 Sorocaba SP 21:12
    “Sou uma pessoa católica e vou esperar que Deus nos ajude a ver crescer outra vez a vegetação. E espera por alguma ajuda que nos possam dar para pelo menos termos os bens essenciais para casa. Porque, de resto, não tenho nada. Fiquei com a casa e com o que tinha dentro de casa. Animais não tenho, desapareceu tudo. Vou esperar que o tempo nos dê alguma coisa mais. Porque, de resto... foi um inferno que eu vivi. Não sou capaz de explicar por palavras aquilo que eu vivi aqui. Não tenho mais nada a dizer. Vamos esperar, que melhores tempos virão.” Até quando as pessoas vão acreditar em um mito.Se existisse teria evitado essa tragédia e outras até piores, mundo afora. Não a religião,atraso da humanidade.

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