Pedrógão, um mês depois do inferno

Maximiano perdeu a mãe e o pai. “Podia tê-los salvado?”

17 jul, 2017 - 08:00 • João Carlos Malta , Joana Bourgard

Ti Rosalina da Figueira ficou sem casa, Sandra tenta aguentar os 50 postos de trabalho de uma fábrica em escombros, Maximiano perdeu o pai e a mãe. Um mês depois do fogo que transformou em negro o verde de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e de Figueiró dos Vinhos, o que mudou na vida das pessoas? Quase tudo.

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Maximiano perdeu a mãe e o pai. “Podia tê-los salvo?”
Maximiano perdeu a mãe e o pai. “Podia tê-los salvo?”

Pedrógão, um mês depois do inferno:


Um homem salva a sua casa e tenta ir em socorro dos pais. Não sabe nada deles. Pelo caminho quase passa por cima de um corpo deitado na estrada. Sai do carro, percebe que é um amigo. Pega-lhe e já não há nada a fazer. Segue em direcção à casa dos progenitores. O carro abana com o vento e há árvores espalhadas na estrada. Finalmente chega ao destino. Os corpos deitados na cozinha denunciam o fim. Trá-los para fora de casa. Ela arde. Vai esperar quase seis horas, com os pais mortos ao lado, até que apareça alguém.

Maximiano Lopes viveu tudo isto. Rebobina a fita atrás, os passos que deu, o que fez e o que não fez, saem-lhe pormenorizados. Tintim por tintim.

Define-se como alguém forte, que raramente se vai abaixo. Apesar da voz calma e pausada com que fala de algo tão brutal, admite que nos primeiros dias andou “sempre a pensar naquilo”, mas que “agora vai esquecendo”. Ou pelo menos faz por isso.

“Tem que se tocar a vida para a frente. Lembrar, lembra-se sempre quando estamos sozinhos, antes de adormecer lembro-me sempre. Mas vamo-nos habituando”, resume.

Os pais, António Vaz Lopes e Maria Augusta Ferreira, de 86 e 87 anos, foram duas das 64 vítimas mortais dos fogos de há um mês. Andavam bem, apesar de já fazerem a vida mais por casa. Moravam ali a meia dúzia de quilómetros da casa de Maximiano, em Castanheira de Pera. Faziam a “vida normal”. António tinha mais saúde do que Maria, recorda o filho.

A pergunta que massacra

Maximiano sabe que os pais já não eram novos, mas quem é que quer uma morte destas para os pais? É quase inevitável que se lhe aflorem alguns sentimentos de culpa, admite.

“É chato pensar que se tenho ido mais cedo os podia salvar e eles tinham outro tipo de morte, sem tanto sofrimento. A partir daí, uma pessoa tem de fazer um dia atrás do outro”, diz.

Mas, tirando a emoção e pondo alguma razão nas opções que tomou naquele dia, convence-se de que fez o que tinha de fazer. “Se tenho lá ido buscá-los…. Mas um gajo lá pensa que vai acontecer uma coisa destas. Tinha lá ido logo às sete e meia”, garante.

De seguida, lembra: “Se tivesse ido antes, se calhar ficaria como os outros, no meio do caminho, porque entre as oito e as nove [da noite de 17 de Julho] foi a altura em que as pessoas morreram. Quem fosse para a estrada morria...”.

Maximiano dá um contexto à dor que sente. Os outros ajudam a minorá-la por comparação. “Há aí pessoas da minha idade que perderam os filhos, como os moços que morreram aqui na estrada [vítimas de Sarzedas de São Pedro]. Ao fim ao cabo, o choque ainda foi maior do que o meu, não é?”, questiona, como se precisasse de uma confirmação.

Aos 62 anos, parece realmente não ser daqueles que abana com facilidade. Mas, depois disto tudo, é possível não se ir abaixo? Não precisa ou precisou de apoio psicológico? “Se tem sido logo dois ou três dias depois do funeral… mas psicologicamente também não sou muito fraco. Ainda assim, nunca ninguém me perguntou por nada”, confessa.

Dez horas onde cabem a vida e a morte

Sentado na mesa da cozinha da casa que salvou do fogo, Maximiano transmite uma força física e interior de fazer inveja a muitos jovens. Vive do ferro com o qual faz armações para a construção civil.

Há um mês, era num armazém que tem nas Sarzedas de São Pedro, localidade de Castanheira de Pera onde morreram seis pessoas, que estava quando o fogo começou a aproximar-se. Em dois ou três minutos as chamas fizeram quilómetros.


Pedrógão, um mês depois do inferno:


Só teve tempo para pegar no Smart que conduzia e acelerar para casa. Pelo caminho já viu beiradas de casas a cair, rebentamentos e árvores pelo meio da estrada. Quando chegou, tudo ardia a volta da moradia térrea que tem em plena EN 236-1, que ficaria conhecida como a “estrada da morte”.

“O vento era insuportável. Tenho eucaliptos à frente da casa e eles dobravam até meio. E o lume por cima do telhado da minha casa. Os pinheiros voavam”, recorda.

A mulher ficou em casa a fechar as janelas e a assegurar-se de que as chamas não entravam. Ele e o filho atacavam as chamas na zona circundante da casa. Ali, ao contrário do que aconteceu noutros locais, não faltou a água. Foi o que lhes valeu.

O calor era tanto que Maximiano arrisca a dizer que estavam uns 70ºC. Tinha de ir tomando banhos de roupa vestida para aguentar. Passados três minutos, estava seco.

Nunca pensou em fugir e deixar a casa para trás, confessa. Isto apesar de o cenário ser quase de guerra. Minutos depois, deixou de se ver o que quer que fosse. E para tudo ser mais aterrador, do outro lado da estrada, onde estavam estacionadas as galeras de uns camiões, começaram a estourar os pneus.

“Havia pedras que vinham ter aqui acima com os rebentamentos. A casa parecia que estremecia, às vezes. Eram bombas porque são pneus grandes e quando aquilo rebentava… parecia sei lá o quê”, recorda.

Uma viagem diabólica

Quando tudo acalmou perto de casa, pegou no filho e foi em direcção a casa dos pais. Um caminho de cinco minutos que demorou 40 a fazer. Pensou em ir por uma estrada junto a uma ribeira que ali há porque lhe pareceu que a probabilidade de encontrar fogo seria menor. O que se passou a seguir foi dramático.

“Cheguei ao pé do cemitério [de Sarzedas de São Pedro] e vi pessoas já caídas e mortas no alcatrão”, começa a contar. “Por acaso não os pisei com o carro, fiquei a cinco ou dez centímetros do corpo. Não se via nada. O meu rapaz é que viu. Ia a conduzir pelo risco, depois apercebi-me que foi uma sorte não os ter pisado”, acrescenta.

Saiu da viatura e percebeu que era um vizinho. Tentou salvá-lo. “Ainda o abanei, mas vi logo que ele já estava a ficar seco. Vi-o nascer”, lamenta.

No local, estava um guarda da GNR que lhe disse que estavam mais três ou quatro corpos e que não podia ir para baixo. Seguiu para cima. Teve de parar várias vezes porque havia eucaliptos e pinheiros por todo o lado. O calor era tanto que teve medo que os pneus derretessem.

Tantas horas sem ninguém aparecer

Finalmente conseguiu alcançar a casa dos pais. Bateu no portão e ninguém abriu. Deu a volta e conseguiu espreitar pela janela da cozinha. Já viu o pai deitado no chão.

“Já devia estar caído há hora e meia. Tentei abrir a porta, mas quem é que conseguia entrar? As portas ainda são de ferro e assim que pus a mão tive de me chegar para trás. Era cá uma temperatura no ferro da porta e nas paredes da casa que só visto. Parti a janela e vi uma mangueira com a qual eles deviam ter andado a apagar o lume”, conta.

Quando finalmente entrou dentro da casa construída com muitos materiais de madeira, conseguiu arrastar os corpos para o alpendre exterior. Ainda tentou regar as paredes e as portas, mas a água esgotou-se pouco depois. A casa acabou por ser consumida pelas chamas.

Maximiano começou a ligar para o 112 às 22h00 e de “cinco em cinco minutos estavam a perguntar como era” do outro lado. Teve de repetir tudo uma, duas, tantas vezes. “Até me chateei e perguntei se era preciso estar sempre a perguntar as mesmas coisas.”

Informou que tinha os pais mortos ao seu lado, perguntou se lá iria alguém. Só apareceram às 2h00. A certeza de que os pais não estavam vivos era quase absoluta, mas “eu não sou especialista.”

Finalmente, apareceram duas ambulâncias de Vieira de Leiria. Mas ainda não tinha terminado. Era necessário ir lá alguém da GNR para tomar conta da ocorrência. “Para lá ir uma patrulha, tive de mandar o meu rapaz à Castanheira duas vezes. Só apareceram às quatro da manhã”, lembra.

“Saí de lá às cinco da manhã. Até comecei a ficar com medo que ainda começassem a dizer que eu é que fiz mal às pessoas. Um gajo fica assim coiso…”, balbucia.

Conseguiu voltar a sua casa, tomar um banho, descansar duas horas até voltar para à habitação dos pais “para ver se aparecia alguém” para os levar.

Depois de tantas emoções em poucas horas, começou outra luta, a da burocracia. “Tem-me dado uma trabalheira maluca porque isto é um país de papéis. É papéis para todo o lado. Ele é dos bens, dos funerais, do arranjo da casa. Há um mês que não se faz mais nada”, resume.

Quem viesse morria

Num balanço de tudo o que viveu, diz que viu poucos bombeiros e quase não se cruzou com a GNR, mas não critica a actuação das autoridades.

“Diz-se por aí que se podia ter cortado a estrada [EN 236-1]. Mas foi tudo tão rápido que não houve hipótese. Quem viesse sujeitava-se a ficar no meio do caminho, tal como ficaram essas pessoas que morreram”, define.

“Ninguém teve possibilidade de cortar a estrada porque isto foram cinco ou dez minutos. O vento andava a mais de 100 quilómetros por hora”, quantifica.

Ao fim de quase uma hora em que puxou atrás a fita dos acontecimentos daquela noite, Maximiano escolhe o género de tudo o que observou e experienciou: “Na minha cabeça fica um filme, as chamas que eu vi só as tinha visto na televisão quando passam esses filmes de terror.”


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  • Edgar
    17 jul, 2017 Joane 16:02
    A história de Maximiniano e da sua família não pode deixar ninguém indiferente. Por respeito aos que morreram, temos que garantir que em futuras situações ninguém é deixado à sua sorte, sobretudo os mais vulneráveis, como os idosos que vivem isolados.
  • rosinda
    17 jul, 2017 palmela 12:41
    A ti rosalina e apenas uma mulher! A outra e senhora ministra!

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