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Pedrógão, um mês depois do inferno

Ti Rosalina ficou sem casa. Aos 79 anos, uma nova provação

17 jul, 2017 - 08:00 • João Carlos Malta , Joana Bourgard

Ti Rosalina da Figueira ficou sem casa, Sandra tenta aguentar os 50 postos de trabalho de uma fábrica em escombros, Maximiano perdeu o pai e a mãe. Um mês depois do fogo que transformou em negro o verde de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e de Figueiró dos Vinhos, o que mudou na vida das pessoas? Quase tudo.

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Ti Rosalina ficou sem casa. Aos 79 anos, uma nova provação
Ti Rosalina ficou sem casa. Aos 79 anos, uma nova provação

Pedrógão, um mês depois do inferno


Ti Rosalina está habituada a sofrer. Foi uma vida no campo, onde trabalhou “como uma mula”, de sol a sol. Foi o marido que esteve dez anos acamado antes de morrer. É o filho que aos 53 anos depende muito dela. São 79 anos em que o corpo e a alma coleccionam as marcas de uma vida dura. Com esta idade já não esperava ter de passar por nova provação. Mas ela veio: o fogo levou-lhe a casa e com ela foram-se todos os objectos e valores que demoraram uma vida a conquistar. Tudo reduzido a cinzas, a pedra, a pó.

Ti Rosalina da Figueira, como é ali conhecida por todos, vivia com todos os passos pré-determinados por uma rotina que se repetia dia após dia. De um lado de uma rua erma, na aldeia da Figueira, que faz fronteira entre Pedrógão Grande e Figueiró, está o café do filho, o Retiro do Lino; do outro, a casinha de dois pisos onde vivia com Adelino; e, mais afastado, mas não muito, os talhões de terreno onde tinha umas hortaliças e algumas árvores de fruto.

Até ao fogo de 17 de Junho, tudo era calmo, lento, previsível. Até que tudo mudou.

A mudança põe os pensamentos de Rosalina a andar à roda. Nem os 30 dias que já passaram servem de almofada. “A minha cabeça ainda não anda certa. Não sou capaz, vejo a minha casa com tudo ardido… Foi tudo, não ficou nada, os móveis, a roupa, nadinha.” A voz sai quase sempre arrastada como se antes de cada palavra pudesse activar uma lágrima.

A casa desta mulher foi uma das 122 que ficaram totalmente ou parcialmente destruídas em Pedrógão Grande, num total de 169 primeiras habitações nos três concelhos afectados. Para as recuperar será necessário um investimento de quase 28 milhões de euros.

Eles vêm de todos os lados

Rosalina está no café do filho, onde agora passa a maior parte dos dias e a televisão substituiu a terra como companheira na maior parte das horas. Numa aldeia com poucas pessoas e onde todos se conhecem, nunca se viu tantos forasteiros como nos últimos dias. A pequena rua encheu-se de políticos, de técnicos, de arquitectos, de voluntários. Vêm de todos os lados, de todas as instituições, enchem as ruas de carros.

A onda de solidariedade que o país fez crescer chegou ali. “Têm-nos ajudado com tudo: roupa e comida. Não tem faltado nada”, reconhece, agradecida.

Para o filho Adelino é que tem sido mais difícil de arranjar o que vestir, mas mesmo assim possível. “Para ele é muito custoso, tiveram de vir de fábrica porque ele é muito gordo. As calças não lhe servem e arranjaram camisolas, calças e calçado. Ele só calça as botas de biqueira de aço porque entorta os artelhos para fora”, explica.

Para a Ti Rosalina, Adelino é uma preocupação constante. Por várias vezes vai repetindo ao longo da conversa o mesmo conjunto de frases em que liga o fogo de há um mês ao medo de deixar o filho sozinho.

“Nunca me vou esquecer do que aconteceu, só em morrendo. Se morro, deixo cá o meu filho e nem terra não me come [mais tarde explica o significado desta frase, que se aplica a quem depois de morrer deixa algo que lhe é querido e de que quer tomar conta]. Ele não se governa sozinho. Fica aos pontapés dos outros. Ele é muito doente. Estou sempre a pedir a Deus que me dê mais uns aninhos de vida, mas, quando Ele entender que me leva, leva-me mesmo”, sentencia.

A septuagenária sai do café e encaminha-se para o portão de ferro que dá acesso à casa onde viveu de que agora apenas resta um esqueleto enegrecido. Essa entrada dá também acesso à casa da irmã, onde ela e o filho vivem desde que ficaram sem tecto.

“Olhe como isto está”, diz, enquanto aponta para o negro da casa de banho. “Queimou-se tudo. Agora não sei se eles botam tudo ao chão. Não me importava que eles fizessem tudo só com um piso. Isto está tudo estoirado. O que é que eles vão fazer a isto?”

Coração como um bago de milho

A dor de ver a casa destruída entra-lhe pelos olhos todos os dias. “‘Atão’ não custa andar aqui? O coração da gente é sempre como um bago de milho. Sempre como um bago de milho”, reforça. Relembra os santinhos que enchiam todos os cantos da sala e que agora tanta falta lhe fazem. Para lhe dar força.

Já foi visitada pela autarquia, pelos técnicos, mas foi quando Marcelo Rebelo de Sousa entrou em sua casa e lhe prometeu que pelo Natal já estaria no novo lar que ficou mais confiante. “Vi-me na televisão agarrada a ele. Apareci com o meu chapéu e assim todos sabem quem eu sou. Nunca largo o meu chapéu”, afirma num dos poucos momentos em que os soluços e os suspiros dão lugar a um sorriso.

Ninguém lhe perguntou como queria ou não a casa. Mas termina a frase com a resignação de quem sabe que não controla o processo. “Eles é que sabem. Só quero que me façam uma salinha, dois quartos e uma casa de banho”, enumera.

O presidente da Câmara de Pedrógão Grande, Valdemar Alves, diz que a habitação é a prioridade da recuperação do concelho. E, ao contrário do que diz o ditado, nos casos em que as casas estão apenas parcialmente danificadas, a reconstrução deve começar pelo telhado. Só assim, explica o autarca, se pode proteger da chuva do Inverno o que lá está dentro.

As obras no terreno já começaram, mas ainda não chegaram às casas que ficaram totalmente destruídas. Valdemar Alves justifica-o de duas formas: a menor burocracia necessária para aprovar pequenas reparações e a tentativa de aproveitar a recuperação para também ajudar a reerguer a economia local.

“Não temos muitos construtores no concelho, mas queremos dar a prioridade a quem é daqui e foi afectado com isto. Se temos de dar o dinheiro a ganhar que seja às pessoas do nosso concelho porque também são vítimas”, defende o autarca.

Em relação às casas que ficaram totalmente destruídas, Valdemar Alves quer que os trabalhos comecem dentro de duas semanas. Desejava que fosse tudo mais célere e acaba a criticar a burocracia que a própria câmara cria.

“Há certas coisas que temos de avançar e não podemos estar à espera de projectos vindos do arquitecto com especialidades disto e daquilo. Acho uma estupidez – e contra os regulamentos falo. São coisas que já existiam. Antes as casas já tinham um sistema eléctrico, um sistema de água. Temos de ultrapassar a burocracia”, defende.


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Quanto a prognósticos para as pessoas estarem dentro de suas casas, Valdemar está alinhado com a previsão que o Presidente da República fizera à mulher de Figueira. “Até ao Natal.”

Um pesadelo com memórias sonoras

Até lá, Ti Rosalina estará na casa da irmã. Ela recebeu-a de braços abertos, mas nunca é a mesma coisa (“O nosso cantinho é o nosso cantinho”). Tudo isto numa altura em que a irmã passa por um momento complicado. Outro problema a somar. Vai ser operada a um intestino. Mais uma dor para Rosalina.

Quando entra no pátio que dá acesso à antiga casa, nem o canto dos pássaros que ali estão evita que na cabeça de Rosalina as imagens da noite do incêndio lhe voltem à cabeça. E são tão sonoras que lhe ecoam na cabeça.

“Estava em casa e comecei a ouvir aquele barulho ‘buuuuu’ , ‘buuuuu’, e tive de fugir para a rua. Começou numa casa ali em baixo e acabou na minha. Aquilo foi em dez minutos”, resume, antes de continuar: “Depois veio o fumo e ouvia-se ‘puuuuum’, ‘puuuuum’, ‘puuuuum’. Pareciam bombas que estouravam no ar como bolas de fumo. Incendiava tudo, nunca vi na minha vida nada assim. E tenho 79 anos.”

Uma coisa assim deixa marcas. Em campo, nos três concelhos, estiveram várias equipas de psicólogos. Rosalina diz que as viu, mas que nunca estiveram com ela cara a cara. Foi numa roda com os vizinhos e familiares que conversou com estas equipas.

“Falaram comigo e com muita gente. Não me receitaram nada, não senhor. Foi toda a gente junta. Não pode ser, não pode ser”, repete.

“Um dizia uma coisa, vem outro e diz outra coisa. Elas chegam ao ponto de que não estão com atenção. É muita gente a falar. Devia ser uma de cada vez, não é?”, questiona. Mas uma certeza tem: “Gostava de ter alguém a quem contasse a vida, que falasse disto e daquilo”.

O autarca de Pedrógão diz que a dimensão psicológica não está a ser descurada. “As pessoas saem de casa e vêem tudo ardido. Não têm o gatito e o cão para tratar. Não têm as galinhas, nem o porquito, que era muitas vezes o complemento das reformas, das fracas reformas que têm. As pessoas não sabem para onde ir e o que fazer. Isto deprime um pouco as pessoas”, reconhece.

Para minimizar o impacto da tragédia, o presidente da câmara revela que as crianças das aldeias estão a ir para a vila, “onde têm um ATL alargado”.

“Estamos a tirar as crianças até aos 15 anos e queremos que, através das conversas, os médicos, psiquiatras e psicólogos percebam como está a situação em casa. Vamos arranjar um programa para idosos também, até aparecer a verdura e a Primavera”, anuncia.

Uma vida que foi sempre difícil

Com o incêndio foi-se a casa de Rosalina, foi-se a horta em que plantava, foram-se os barracões em que guardavam as ferramentas, foram-se os animais que davam algum sustento. Ficaram os 450 euros que tem de reforma dela e do falecido marido. O café pouco ou nada dá. “Às vezes tenho de meter dinheiro do meu.”

Habitou-se a “viver com a mão fechada”, até porque o filho – e é sempre nele que Rosalina pensa nas decisões que toma – precisa de ir muitas vezes ao médico. De cada vez que tem de ir a Coimbra a consultas, e não são poucas, gasta 50 euros só de táxi.

Ainda assim, e com toda a desgraça e privação, tem espaço no coração para agradecer. “Deus Nosso Senhor ainda nos deixou aqui e temos de dar muitas graças. Deixou-me vivo a mim e ao meu filho.”


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