08 fev, 2017 - 20:21 • João Carlos Malta , Joana Bourgard (fotografias)
- Já sabia que o bairro ia abaixo há muito tempo, não é?
- Já, já, já. A gente desconfiava…. A barraca é ilegal, mas fizemos cá a nossa vida.
- Estava à espera que nunca acontecesse?
- Sim, nunca esperei.
- Apesar de estar prometido há muito tempo?
- Sim.
Mesmo quando a realidade está marcada no tempo e sabe-se que é imutável, há sempre quem a queira negar. Mesmo sabendo que é irracional.
António Sanha, de 68 anos, assume-o. Quer muito contar a história que, receia, o pode levar para a rua. Literalmente. A demolição de mais quatro casas, no Bairro 6 de Maio, na Amadora, na terça-feira, fez de novo soar o alarme da urgência para uma solução.
António vive há décadas naquele bairro, iniciado no final da década de 1970, que hoje é um amontado de casas e ruínas. Quando aqui chegou, arrendou um quarto a meias a pagar 50 euros por mês. O senhorio saiu da casa, mas ele e mais quatro companheiros ficaram. Diz que a autarquia da Amadora deu dinheiro ao dono da casa, mas eles ficaram a viver “na barraca”. Agora que o bairro vem abaixo, Sanha e os amigos não têm direito a nada.
Vive com 300 euros. “O que é que vou comer? Com o dinheiro que tenho como vou alugar [arrendar] uma casa? Temos de ter um fiador e quem é que vai ser o fiador? Eu não tenho."
António Sanha assusta-se quando pensa que a autarquia dá apenas 15 dias de apoio ou de abrigo a quem não tem direito a uma nova casa naquele bairro maioritariamente habitado por pessoas com raízes guineenses e cabo-verdianas. “E depois disso?”, questiona. “A situação está muito complicada, muito complicada”. Acrescenta: “Não digo que é por sermos pretos, não vou por aí."
Não sabe quando é que a casa em que está ficará feita em pó. “Estou mesmo preocupado.” Sabe para onde poderá ir? “Neste momento, não”, enfatiza. Garante que há muitos no bairro na mesma situação.
A falta de informação sobre quem realmente mora no bairro dificulta a contabilização do número real de pessoas que estão em iguais circunstâncias.
Informalidade
Uns metros ao lado, está sentado Suleimane Bamba, de 72 anos. Está reformado por invalidez há vários anos, resultado de uma bala alojada na anca, culpa da guerra colonial. Vive no bairro há mais de 30 anos.
Tal como António Sanha, é mais um exemplo da informalidade que há no 6 de Maio em relação aos donos das casas e aos “contratos” entre senhorios e arrendatários. Jura que estava nos registos da câmara até 2008, como residente no 6 de Maio, mas uma ausência de três meses na Guiné devido ao funeral da mãe retiraram-no das listas.
O senhorio saiu da casa em que vive e, portanto, Suleimane não tem direito a casa. Se nada se alterar terá um destino certo.
“Vou para a rua, para onde hei-de ir? Não tenho para onde ir, não tenho direito”, constata. Mas Suleimane não quer uma casa da autarquia, exige uma residência nova. “Elas querem que eu alugue, mas eu não quero. Como vou arrendar um quarto com 580 euros e com a minha filha na universidade a precisar de dinheiro?”, questiona.
Não quer uma casa da câmara? “Não, quero dinheiro no banco. Quero uma casa com dois quartos, um para mim, outro para a minha filha”, defende.
A autarquia diz que ele não tem direito a tal. Ainda assim, Suleimane diz que está “à espera” de ver o que acontece.
Mas nem todos no bairro vão ficar sem casa. Maria Soares está à espera de nova habitação ao abrigo do Programa Especial de Realojamento (PER) da autarquia. Como a filha lhe dará uma neta em breve, ainda aguarda a mudança para uma casa maior.
Preferia ficar: o sentimento de pertença ao bairro fala mais alto. “Não estou contente. Vivo aqui há muitos anos. Todos os meus filhos nasceram aqui e estão todos com mais de 30 anos.”
E os ilegais, têm direito?
O Centro Social 6 de Maio, que há várias décadas trabalha com a população do bairro, alerta para um problema que está a preocupar a instituição. A irmã Deolinda Rodrigues afirma que há pessoas que foram aceites no PER, mas podem ficar sem casa.
“São pessoas que estão inscritas no PER, há bastantes casos, mas não estão documentadas e essas pessoas ficam excluídas”, afirma Deolinda Rodrigues.
A responsável pelo Centro Social 6 de Maio garante que, até ao momento, este problema não tem consequências práticas, mas pede ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para ser mais célere na solução dos casos.
“Penso que essas situações ainda permanecem no bairro, mas o SEF está a demorar muito a responder. Isso é um problema sério”, defende.
Em resposta escrita às perguntas da Renascença, a Câmara da Amadora (CMA) diz que tem conhecimento de que existem elementos de alguns agregados familiares que se encontram sem documentos, mas garante que está a ajudar todos para resolver estes problemas.
A câmara reforça que ainda nenhum agregado foi excluído por se encontrar sem identificação.
“Até ao momento nenhum agregado foi excluído do PER por se encontrar indocumentado. O que já sucedeu, e de forma residual, foram exclusões de elementos de um agregado por esse motivo. De todo o modo, o facto de um elemento de um agregado ser excluído não invalida, na prática, que o mesmo acompanhe o respectivo agregado no seu realojamento”, sublinha a CMA.
A autarquia garante estar atenta porque, no quadro legal, “não é permitido celebrar contratos de arrendamento social com pessoas indocumentadas”.
Acrescenta que, no passado, para evitar que um agregado fosse excluído do PER, “a câmara celebrou contratos de arrendamento com os filhos dos respectivos agregados, por estes serem os únicos a terem documentos válidos”.
“O bairro já não é bairro”
A irmã Deolinda diz, todavia, que este tem sido um dos travões para as pessoas que querem abandonar no imediato do bairro.
“O bairro neste momento já não é bairro. Viveram aqui toda a vida, mas sentem-se muito inseguras porque isto torna-se um foco de consumos ilegais. Há pessoas com medo e que queriam sair. Acho que as famílias que ainda não saíram é por terem pessoas no agregado familiar que não têm documentos”, remata.
Através do PER, a Câmara da Amadora “já procedeu à erradicação de mais de 20 núcleos degradados dos 35 existentes, tendo realojado mais de três mil agregados familiares”, disse a autarquia em comunicado divulgado na terça-feira.
“Desde o início da erradicação do Bairro 6 de Maio já foram solucionados os problemas habitacionais de 189 famílias, através do arrendamento social (realojamento) e de outros programas habitacionais municipais, estando ainda 72 famílias a aguardar o seu realojamento em habitações condignas.”