10 jan, 2017 - 19:34 • João Carlos Malta (texto) e Catarina Santos (fotos)
“Mário Soares trouxe-me a liberdade. Trouxe o saber, o poder discutir com as pessoas, o poder aprender. Até àquela altura [25 de Abril] comia, dormia, tinha de tomar conta dos filhos e não tinha perspectiva nenhuma. Não sabia o que era o mundo. Agora tenho uma visão do mundo e uma visão política. Sem o 25 de Abril continuava ignorante”.
Maria Luísa tem uma rosa e, quando recorda como Mário Soares lhe mudou a vida, há um qualquer comando automático entre as palavras, o pensamento e os olhos que lhe faz deslizar uma lágrima.
Aos 77 anos, reformada, bate palmas à passagem do cortejo fúnebre que naquele momento entra na rua que dá acesso ao cemitério dos Prazeres, na freguesia da Estrela, em Lisboa, e solta um desabafo: “Espero que nunca mais tenhamos de viver uma ditadura”.
Quando se pede às pessoas para identificarem a forma como o fundador do PS e homem-chave do 25 de Abril teve um impacto transformador nas suas vidas, há uma palavra que asfixia todas as outras, dada a grandiosidade que encerra: liberdade. Soares teve uma vida cheia, uma acção política vasta, quase nunca foi consensual, mas na memória dos que o amaram ficou como o homem que tirou a mordaça aos portugueses.
“Lembro-me quando era miúda na escola, não se podia falar. Eu andava a distribuir panfletos de um partido de esquerda e havia problemas. Tive familiares que estiveram presos como ele. Estou aqui para prestar a homenagem para que possamos estar aqui e viver em liberdade como vivemos”, enfatiza Maria Rodrigues, engenheira de 59 anos.
Maria espera junto à Assembleia da República que o corpo de Soares passe pelo local onde o ex-primeiro-ministro e ex-Presidente da República passou tantos momentos importantes e alguns de duro combate político de uma vida pública de mais de 60 anos.
São apenas algumas centenas que ali se juntam para ver o cortejo que vem do Mosteiro Jerónimos, mas mesmo assim os suficientes para não deixar uma jovem de 30 anos seguir a rotina diária. Queixa-se que não pode apanhar o eléctrico.
- “Ainda tenho de subir a calçada do Combro e não me pagam para subir isto tudo a pé.”
Não fica sem resposta. Uma outra mulher com mais de 50 anos, que segura duas bandeiras, uma de Portugal e outra do PS, vocifera:
- “Você não tem noção. Se tivesse vivido o que eu vivi dava valor.”
O choque de gerações termina com um anestesiante: “Isso depende da perspectiva”.
Mas há ali logo ao lado jovens que não olham para o tempo da mesma maneira. Até fizeram duas horas de caminho e 200 quilómetros para saudar Soares. Para estes estudantes, ele foi mesmo fixe.
“Somos jovens e temos a herança do que aconteceu. Mário Soares lutou bastante contra o regime opressor e depois conseguiu instituir a democracia no nosso país. E mais do que isso, temos a grande responsabilidade de manter o seu legado. Ele liderou pelo exemplo”, explica José Dias, de 25 anos, actual presidente da Associação Académica de Coimbra.
Do outro lado da estrada, sentada num muro para descansar as pernas que move com a ajuda de muletas, está Maria Luísa. Quis agradecer ao homem que cortou com uma "velha senhora" de quem não gostava.
“Derrubou a ditadura, não se podia falar no tempo do Salazar. Havia a PIDE, o que é que há de pior? Não se podia dizer nada, era o Governo de um só homem, não era o Governo do povo”, defendeu a arqueóloga reformada.
Mário Soares sempre cultivou uma proximidade com o povo. Nunca teve medo das pessoas. Sempre as quis perto dele. Tanto que nem as míticas bochechas escapavam. Não raras vezes eram apertadas pelas mulheres que encontrava em campanha. Uma informalidade recuperada por Álvaro do Bem, 59 anos, bancário.
“Para muitos era apenas o Mário, ou o ‘ti Mário’ para se perceber o grau de intimidade que havia no que diz respeito ao pensamento. Sou de uma geração que estava preocupada em ir para a guerra do Ultramar e que de um momento para o outro lhes aparece um futuro”, explica.
“Ele era um homem com um discurso de futuro. Nunca deixou de emitir opinião”, sustenta.
Por esta altura, já o desfile fúnebre circulava em direcção ao cemitério dos Prazeres, com passagem pela sede do PS, no Largo do Rato. Alguns milhares de pessoas assistiram na rua ao percurso até à chegada ao cemitério onde estão enterrados outras grandes figuras da cultura portuguesa, como Mário Cesariny, Ramalho Ortigão, Maria de Lourdes Pintassilgo, Natália Correia ou José Cardoso Pires.
É lá dentro que está Armando Soares, militante socialista à moda antiga com bandeira na mão e os ideais no coração. É da altura da fundação do partido e esteve em vários encontros de camaradas em que estavam Soares e Salgado Zenha. Há um traço da personalidade do ex-líder histórico que a memória sublinhou.
“O que mais recordo é a sua determinação. Quando tínhamos reuniões do partido ele tinha uma opinião e ele defendia até à última e nós acreditávamos que ele tinha razão”, recorda.
Ainda não eram 17h00, quando o caixão de Mário Soares entrou no jazigo e o povo que o adorou se despediu de uma das figuras mais marcantes do século XX em Portugal.