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Podem os sonhos de Silicon Valley pôr em causa a espécie humana?

03 ago, 2018 - 10:01 • Inês Rocha

Franklin Foer vê uma nova “religião” a nascer no berço dos gigantes tecnológicos norte-americanos. Para o jornalista, os sonhos dos seus líderes constituem um “perigo real, não só para a democracia mas também para o nosso futuro como espécie”.

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Silicon Valley. Como os gigantes querem fundir-nos com as máquinas

Em 2014, quando se demitiu do cargo de editor da centenária "The New Republic", uma das revistas mais conceituadas de Washington D.C., o norte-americano Franklin Foer começou a prestar mais atenção aos discursos dos líderes das grandes empresas tecnológicas de Silicon Valley.

O resultado da investigação em que se lançou, na forma de um livro já nas livrarias portuguesas, é um convite à reflexão "sobre as ideias que alimentam essas empresas e o imperativo que é resistir-lhes".

“Mundo Sem Mente - A ameaça existencial da Alta Tecnologia” saiu nos Estados Unidos em setembro do ano passado e foi editado em Portugal em junho, pelo Círculo de Leitores.

Na sua investigação, o jornalista norte-americano olha para o percurso dos líderes das empresas que dominam o mercado tecnológico há vários anos, conhecidas pela sigla “GAFA” – Google, Amazon, Facebook, Apple – analisando a sua forma de pensar e ver o mundo.

Empresas, para o autor, "tão grandes e poderosas que detêm controlo sobre os mercados, sobre a opinião pública e, além disso, com enorme influência sobre a democracia". Empresas também capazes de atingir valores históricos e astronómicos, como aconteceu esta semana: a Apple tornou-se a primeira empresa pública dos EUA a atingir o marco de 1 bilião de dólares (um milhão de milhões) de valor de mercado.

“Apesar de o grosso da imprensa tecnológica se deixar ofuscar pela cobertura do lançamento do mais recente produto", escreve Foer, "ignorando, em grande medida, tudo o resto, nos discursos e reuniões anuais de fiéis, os pais fundadores destas empresas tendem a fazer grandiosas proclamações sobre a natureza humana – uma visão que nos pretendem impor a todos”.

Se Mark Zuckerberg quer “ligar todo o mundo para criar uma bonita rede de entendimento e comunidade” com o Facebook, os fundadores da Google, Larry Page e Sergey Brin, ambicionam criar uma “Inteligência Artificial completa” – a criação de máquinas que possam igualar e eventualmente ultrapassar a inteligência humana. Sonhos “tão grandes e poderosos que temos de descrevê-los como religiosos”, defende o autor em entrevista à Renascença.

A ideia de um novo credo estar a nascer em Silicon Valley não é nova. O historiador israelita Yuval Noah Harari, no seu livro “Homo Deus – Uma Breve História do Amanhã”, já falava dessa espécie de religião, a que dá o nome de “Dataísmo”.

Segundo o docente do Departamento de História da Universidade Hebraica de Jerusalém, tal como a autoridade divina foi legitimada pelas religiões e a autoridade humana foi legitimada pelas ideologias humanistas, os gurus e “profetas” da tecnologia estão a criar uma nova narrativa universal que legitima uma nova autoridade: o poder dos algoritmos e dos dados.

Segundo o investigador, os crentes no “Dataísmo” veem o universo como um fluxo de dados, os organismos como algoritmos bioquímicos e acreditam que a vocação da humanidade é criar um sistema de processamento de dados abrangente – e, em última instância, fundir-se com ele.

Harari e Franklin Foer concordam quando tentam identificar o maior “sacerdote” dessa "nova religião": Raymond Kurzweil, conhecido como “o futurólogo da Google”.

O responsável pelo setor de engenharia daquela empresa acredita que, até 2045, o Homem atingirá a singularidade tecnológica – uma fusão do ser humano com as máquinas. Será aí que os humanos atingirão a imortalidade, ao tornarem-se virtuais, defende o inventor.

Essa “imortalidade”, segundo Kurzweil, funcionará como um software de computador: "Quando mudamos de um computador antigo para um modelo mais recente, não descartamos todos os nossos arquivos. Em vez disso, copiamo-los e reinstalamo-los no novo hardware,” explica.

Kurzweil acredita que, neste ano, também os seres humanos poderão fazer “upload” do seu cérebro e libertar a mente da prisão que é o seu “corpo biológico, versão 1.0”.

Franklin Foer admite, no seu livro, que a singularidade não é a religião oficial de Silicon Valley e que Kurzweil é até visto com desdém por muitos dos seus pares.

No entanto, vários membros da elite tecnológica ouvem as suas previsões com admiração. Bill Gates chama-lhe “o melhor vaticinador que conheço quanto ao futuro da inteligência artificial”. Larry Page nunca teceu comentários públicos acerca de Kurzweil, mas nomeou-o diretor de engenharia da Google, ajudou a financiar a criação da Universidade da Singularidade e chegou mesmo a dizer: “Se eu fosse estudante, era aqui que gostava de andar”.

O fundador da Google investiu também na Calico, uma startup que pretende resolver o "problema da morte".

Franklin Foer classifica todos estes “sonhos idealistas” como “perigosos”. A origem do problema, diz, está no facto de os monopólios serem a nova “ordem natural e desejável das coisas” em Silicon Valley.

“Durante décadas, deixámos cair a nossa atenção, parámos de nos preocupar com os monopólios. Pensámos ‘oh, vai sempre haver algum miúdo numa garagem que vai criar a próxima startup, que vai destruir a Google e o Facebook’”, diz o jornalista à Renascença.

Contudo, considera Foer, “isso não aconteceu. O Facebook é uma empresa madura. O Google é uma empresa antiga. Existem há 20 anos. Não acho que possamos dizer que vão simplesmente crescer e cair por elas. Estão cá para ficar.”

O prolongamento no tempo da existência destes monopólios está a transformar muitos mercados, nomeadamente o do conhecimento. Graças aos serviços oferecidos pelos gigantes tecnológicos, os conceitos de privacidade e de direitos de autor são cada vez menos valorizados.

“Nós pensamos neles como libertários”, explica o jornalista. “Eles leem Ayn Rand [criadora da corrente objetivista e apoiante do capitalismo laissez-faire], odeiam a regulação. E isso é um bocadinho verdade. Mas se os ouvirmos com atenção, é claro que eles são fundamentalmente coletivistas”, considera.

“Tudo é sobre a grande massa da humanidade, criar coisas que inspiram a colaboração, os media são sociais, tudo é sobre a multidão. Há uma fé no coletivismo que os torna muito insensíveis aos indivíduos, à individualidade. Essa é a razão pela qual eles são tão maus com a privacidade, não se interessam sobre os direitos de autor, que pensem que os monopólios são uma melhor forma de capitalismo”, afirma Foer.


Como Silicon Valley está a “engolir o jornalismo”

Em “Mundo Sem Mente - A ameaça existencial da Alta Tecnologia”, Franklin Foer começa por admitir que é um pouco alimentado pela “raiva” que os gigantes de Silicon Valley lhe merecem, por estarem a “engolir” a profissão jornalística aos poucos. Uma mudança que chegou mesmo a custar-lhe o emprego.

“Espero que este livro não pareça alimentado pela raiva, mas também não quero negar a minha ira", escreve no prólogo. "As empresas de tecnologia estão a destruir algo precioso, que é a possibilidade de contemplação.”

Foer já tinha sido editor da revista em 2010, mas voltou ao cargo quando a "The New Republic" foi comprada por Chris Hughes, colega de quarto de Mark Zuckerberg em Harvard e co-fundador do Facebook. Quando chegou, Hughes parecia partilhar o mesmo idealismo de Foer relativamente ao jornalismo e convidou-o para voltar a dirigir os destinos da revista.

No entanto, a visão tecnocrática do novo dono, que queria transformar a revista numa “empresa tecnológica” e procurava desenfreadamente obter lucros na internet, acabaram por colidir com a visão “romântica” do editor sobre o jornalismo.

Em 2014, Franklin demitiu-se e levou grande parte da redação consigo. Uma decisão que apenas evitou o seu despedimento – na altura, Hughes já tinha substituto para o seu lugar. O jornalista descreve esta demissão em massa como uma espécie de “lomba” no caminho de Silicon Valley para “engolir o jornalismo”. O caso teve alguma atenção no imediato, mas acabou por ser esquecido.

Hoje, Franklin Foer trabalha na revista "The Atlantic" e considera que não há escapatória para o controlo que as empresas de tecnologia e os seus donos exercem sobre os media.

“Quando eu acabei de escrever o meu livro, iam publicar um excerto na 'The Atlantic' sobre como Silicon Valley está a destruir o jornalismo”, conta Foer à Renascença. “[Mas] entre o tempo de acabarem de editar a minha peça e ela aparecer na revista impressa, a revista foi comprada pela viúva de Steve Jobs.”

O jornalista considera que Laurene Powell Jobs é uma “boa proprietária”, mas que isso não basta para acalmar as suas preocupações quanto à profissão. “Acho que, nos próximos anos, a profissão vai continuar a encolher.”

Foer considera que o jornalismo só sobreviverá com uma transformação no modelo de negócio. “É quase impossível ao jornalismo competir com o monopólio que o Facebook e a Google têm sobre a publicidade”, diz o autor. “Cerca de 70% do mercado americano de publicidade vai para a Google e o Facebook”.

“Na minha opinião, tem de haver um regresso ao [modelo em] que os leitores pagam pelo jornalismo. Não vejo outra escolha. Essa não é a melhor solução. Era melhor se os media pudessem ser grátis para todos, isso é mais democrático. Preferiria isso, mas não acho que a realidade o permita.”

Para já, a consequência da transformação no mercado jornalístico é, além do número de empregos perdidos nos últimos anos, uma redução da qualidade na produção noticiosa e de investigação. “Eu vi as instituições que mais admirei adaptarem-se à era do Facebook e isso mudou-as. Elas podem não ter notícias como as piores partes do Buzzfeed, mas há um pouco disso em todo o lado agora”, diz Foer.

“Até as instituições jornalísticas que têm as melhores intenções estão dependentes do Facebook e do Google e não conseguem deixar de ser distorcidas por essa dependência”, ressalta. É uma cedência à luta pelos cliques, que tem consequências profundas de longo prazo. “O processo de ceder ao público e dar-lhe o que ele quer é uma forma de rendição. O jornalismo está a desistir da sua função primária, que é não só informar o público mas também guiá-lo.”


Qual a semelhança entre um telemóvel e um pacote de Doritos?

Franklin Foer vê muitas semelhanças entre a revolução tecnológica que estamos a atravessar neste século com a revolução que ocorreu no setor alimentar em meados do século XX.

A produção em massa de produtos pré-cozinhados e "fast food" com grandes quantidades de sódio, lípidos e açúcar encheu as cozinhas de todo o mundo – uma inovação que entusiasmou (e viciou) grande parte da população mundial.

“De repente, as tarefas morosas – comprar ingredientes, os vários passos entediantes de uma receita, a quantidade de louça suja na sua esteira – passavam à história”, escreve o jornalista.

Os novos produtos ficaram tão enraizados nos hábitos alimentares que foram precisas décadas para percebermos o preço a pagar pela conveniência e eficiência dos mesmos.

Hoje, escreve Foer, sabemos que “estas comidas foram feitas para nos engordar”. O problema é que, "no momento em que entendemos as consequências dos nossos padrões de consumo”, era tarde demais: já tinham sido causados graves danos “na nossa cintura, longevidade, alma e planeta.”

O norte-americano compara esta transformação, cujas consequências estamos ainda a viver, com a revolução tecnológica iniciada nos últimos anos, no que toca à produção e consumo de conhecimento. “Tal como a Nabisco e a Kraft [empresas da indústria alimentar norte-americana] quiseram mudar a forma como comemos e o que comemos, a Amazon, o Facebook e a Google aspiram a alterar como lemos e o que lemos”.

“Se puseres uma garrafa de Coca-cola e um saco de Doritos em frente à maioria das pessoas, elas lutam para resistir, mas aprendemos quando éramos crianças que tens de consumir as coisas com moderação”, explica Franklin Foer à Renascença. “Nós ainda não conseguimos encontrar essa moderação na tecnologia, de todo.”

No entanto, o jornalista espera que, tal como na relação com a comida, a população encontre uma moderação no consumo de informação através das redes sociais. “A comida é um bom exemplo de como muitas pessoas decidiram tomar decisões melhores sobre o que consomem. Mesmo que isso custe mais dinheiro, mesmo que seja menos eficiente comprar comida orgânica, as pessoas fazem-no porque acham que é melhor para elas.”

A esperança, no fundo, é que "possamos aprender a fazer melhores escolhas como essa" mas "com as coisas que damos aos nossos cérebros”. Na opinião de Foer, é esse o grande desafio que enfrentamos.

Comentários
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  • Asdrubal Barros
    04 ago, 2018 09:29
    Estes serão os novos donos do mundo, estas multinacionais terão tanto puder que os políticos eleitos não passarão de fantoches, serão elas que ditarão as politicas, serão elas que governarão o mundo, serão elas que ditarão quem vive e quem morre. O mundo assiste impávido e sereno à fusão de empresas que se tornam gigantescas e que monopolizam o mercado não deixando que novas empresas tenham o seu espaço. O único governo que terá mais poder do que as multinacionais será o governo da China o resto do mundo será governado pelos grandes grupos, eles ditarão as regras.

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