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Um físico, um linguista e jovens promessas. Fomos ao fundo para descobrir como se faz uma trivela

29 jun, 2018 - 17:00 • Redação

O gesto e a palavra intrigam. "Faz um arco fixe", ouve-se no relvado. E, por muitas explicações que se busquem, a chave está sempre no talento, que não é para todos.

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Um físico, um linguista e jovens promessas. Fomos ao fundo para descobrir como se faz uma trivela
Um físico, um linguista e jovens promessas. Fomos ao fundo para descobrir como se faz uma trivela

Se Ricardo Quaresma entrar em campo frente ao Uruguai, pelos lares, ruas e cafés de Portugal, é bem provável que se grite: “Chuta de trivela!”. O “Harry Potter” da seleção já nos explicou em campo que trivelas é com ele. Mas sabemos ao certo que magia é esta que o número 20 da seleção nacional faz?

“Não há nada que se passe no jogo de futebol que a física não consiga explicar. É um ramo da física antigo, chamado mecânica, e foi estabelecido por Galileu e por Newton. O movimento da bola é dado pelas leis da mecânica”, sentencia Carlos Fiolhais, físico, que explica à Renascença a mecânica por detrás da trivela.

Num remate normal, há muitas forças em jogo: à força que o jogador imprime na bola, junta-se a da gravidade, que puxa a bola para o chão, a resistência do ar, que faz com que a bola perca um pouco de velocidade, e ainda o efeito de Bernoulli - o mesmo que mantém os aviões no ar -, que resulta da passagem do ar pela bola e que a empurra ligeiramente para cima.

A equação é, contudo, mais complexa quando se trata da trivela. “Quando a bola está a girar, há outra componente curiosa: o efeito Magnus. É isto que permite explicar o pontapé que o Quaresma deu na bola para marcar o último golo no mundial de futebol", sustenta o professor da Universidade de Coimbra.

O efeito giratório, somado às costuras da bola, arrasta o ar em diferentes direções: de um lado, a bola está a empurrar o ar contra o movimento, e no outro, está a empurrar o ar a favor do movimento. A bola muda de trajetória em pleno voo e trai o guarda-redes. Está feito um golo de trivela.

“Em câmara lenta, no golo do Quaresma, a bola parece que até vai para o poste, para o canto mais afastado do guarda-redes. Mas quando parece que vai ao canto ou até parece que vai sair, a bola encurva para a direita e vai entrar no canto superior direito. Ele já fez isto várias vezes, ele é especialista neste tipo de jogadas”, completa Fiolhais.

"É um golo épico!" A magia de Quaresma no relato da Renascença
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A origem obscura do termo "trivela"

Trivela. Substantivo feminino. No dicionário online Priberam, a palavra é descrita como um “pontapé dado na bola com a parte exterior do pé, para criar um efeito de rotação à bola.”

A definição coincide com a explicação do físico Carlos Fiolhais, mas a origem desta palavra perde-se no tempo. Apesar de a explicação mais comum falar do uso de três dedos exteriores para pontapear a bola, para Salvato Trigo, linguista, esta não é a mais verosímil. "A explicação que me parece mais plausível para a utilização da palavra 'trivela' é relacioná-la diretamente com tri-velocidade. 'Trivela' seria uma espécie de acrónimo de trivelocidade, um fenómeno da física”, explica o especialista, que é reitor da Universidade Fernando Pessoa.

O contributo de Magnus não é esquecido na justificação linguística de Salvato Trigo: "Eu julgo que a explicação mais plausível, que, aliás, o professor João Paulo Vilas Boas, da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, terá aventado, referindo-se ao lance de Quaresma, é que o pontapé era pura física, chamado o pontapé de efeito de Magnus”.

"Julgo que será relativamente difícil encontrar uma origem etimológica para uma palavra como 'trivela', que apenas surge na língua portuguesa durante o século XX e ligada ao fenómeno desportivo. A palavra terá surgido nas décadas de 60 e 70, porque terá sido um jogador brasileiro, chamado Rivellino, o autor do primeiro pontapé de trivela”, remata Salvato Trigo.

Fiolhais mostra-se cético sobre a origem científica do termo. “A designação é popular” e, por isso, para o físico da Universidade de Coimbra, será muito difícil saber ao certo de onde veio. “Não é muito antiga, talvez seja de origem brasileira”, arrisca o professor universitário, que lembra que ingleses e alemães usam outras expressões para designar este remate.

Pode um físico ensinar a marcar trivelas?

Na hora do remate, Ricardo Quaresma e os outros ases da trivela sabem o que fazer: rematar de lado, com a parte de fora da bota, para imprimir efeito ao remate e trair o guarda-redes. Mas precisam de saber as forças e os vetores por detrás do remate? Para Fiolhais, a resposta é simples: não.

“Eu não perderia tempo a ensinar ao Quaresma as equações. Acho que os físicos podem muita coisa, mas não podem tudo. Os físicos sabem mais explicar. Pode ajudar a garantir e explicar a mecânica das jogadas. Mas não penso que isso seja muito útil”, diz Fiolhais, ele próprio um amante de futebol.

Por muitas explicações que se dê, a execução é muito difícil. A Renascença comprovou isso na visita ao AD Constance, um clube de formação de Marco de Canaveses, em que jovens estrelas tentaram imitar o craque que admiram.

"É muito difícil chutar, mas faz um arco fixe", foi a linguagem técnica utilizada por um dos executantes. A sessºao de treino foi mais fácil para Bruno, o guarda-redes, que defendeu a maior parte dos remates dos companheiros de equipa.

Paulo Sousa, um dos técnicos do AD Constance, reconhece que os miúdos tentam copiar os seus ídolos, "até nas chuteiras", e a trivela não é exceção. "Os miúdos têm essa referência e vão tentando. Alguns deles chegarão lá, mas é um gesto técnico difícil. Não há ninguém que o consiga fazer como o Quaresma faz. É um gesto técnico que não é para qualquer um", assume o treinador, que no próximo jogo, depois da sessão de testes realizada, espera ver uma série de trivelas em campo.

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