Cinema e publicidade

Como Raul de Caldevilla nos ensinou “o que mais convém ao corpo e ao espírito”

23 jan, 2018 - 07:01 • Catarina Santos

Nunca o país tinha visto cartazes publicitários como aqueles e nunca tinha encarado o cinema daquela maneira. Raul de Caldevilla foi publicitário, realizador, argumentista. A sua vida e obra estão expostas a partir de hoje na Sociedade Nacional de Belas Artes e na Cinemateca, em Lisboa.

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Dois acrobatas escalam a Torre dos Clérigos para tomarem um chá e bolachas, empoleirados na cruz de ferro, para lá dos 75 metros de altura da estrutura granítica. Lá em baixo, 150 mil pessoas amontoam-se a apreciar a proeza. Os audazes trepadores atiram então panfletos sobre a multidão, publicitando as novas bolachas “petit beurre Invicta”.

Poderia ter sido uma ideia maluca discutida numa reunião regada a uísque e comandada por Donald Draper na série “Mad Men”, que retrata o universo de uma agência publicitária nos anos de 1960 nos Estados Unidos. Mas o filme publicitário “Um Chá nas Nuvens” é de 1917 - muito antes de nascer a televisão -, é um marco do cinema mudo português.

A ideia e o engenho saiu da cabeça de Raul de Caldevilla, homem de mil artes. Filho de espanhóis e nascido no Porto em 1877, foi agente consular em Espanha e na Argentina e depois foi realizador, argumentista, publicitário, produtor e distribuidor. Um nome incontornável do universo das imagens em Portugal.

As várias facetas de Raul Caldevilla cruzam-se em dois eventos que começam esta terça-feira: uma exposição sobre a sua vida e obra, intitulada “Cartazes de Sonho”, na Sociedade Nacional de Belas Artes, e três sessões na Cinemateca, que recuperam alguns dos seus filmes fundamentais.

Um homem na vanguarda, “por motivo de vida intensa”

Em 1914, Caldevilla fundou a ETP, Empreza Técnica de Publicidade, a primeira agência publicitária do país. A qualidade gráfica das imagens que dali saíam e a forma de passar aquelas mensagens eram completa novidade. O publicitário sentia a urgência de criar uma nova linguagem.

“A publicidade instrui-nos, em poucos traços, sobre o que mais convém à saúde e ao conforto, ao corpo e ao espírito, libertando-nos da contingência de pensar detidamente onde se encontra o que é útil e belo, quanto nos custará um artigo de primeira necessidade, um quadro, uma jóia, uma estatueta ou um pano”, afirmou. E foi pela publicidade que encontrou o caminho para o cinema, quando assinou os folhetos da Invicta Filmes - uma das primeiras produtoras nacionais.

Quando em 1916 funda a Caldevilla Film, compreende que o mundo está a entrar numa vertigem de mudança que exige uma actualização permanente de linguagens e modos. Há citações suas da altura que bem poderiam ser feitas hoje. “O público de hoje, talvez por motivo da vida intensa que leva e lhe proporciona certos lazeres, escolhe de preferência películas de não muito longa metragem”, escreve no folheto de divulgação de “Os Faroleiros”, um drama/documentário de 1922 com argumento e interpretação de Caldevilla.

A falta de interesse em fazer “esses longos filmes em séries de enredo complicado e por vezes falhos de verosimilhança” e a noção de que “vão sendo postos de parte no estrangeiro” fê-lo procurar aliados fora de portas. Depois de visitar centros de produção de cinema na Europa, contrata em França os realizadores Georges Pallu e Maurice Mariaud e traz para o Porto alguns técnicos. Tinha a ambição de levar a produção portuguesa ao mercado internacional. Falharia a missão, mas o caminho feito marcou a história do cinema português.

Da Caldevilla Film saíram títulos como “A Rosa do Adro”, “Barbanegra”, “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, “Amor de Perdição” ou “As Pupilas do Senhor Reitor”. Raul de Caldevilla escreveu também o argumento de “Fado”, realizado por Maurice Mariaud em 1923, o primeiro filme alguma vez feito sobre aquele género musical - e terminou aí, sete anos depois de ter começado, a sua incursão pelo cinema.

A exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes tem entrada livre e decorre até 12 de Fevereiro. Na Cinemateca, o ciclo é composto por três sessões, sempre às 19h00. A primeira é esta terça-feira e inclui “Um Chá nas Nuvens”, “Entre-os-Rios” e “Os Faroleiros”. Todos os filmes são acompanhados ao piano.

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