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Para elas, trabalhar
não garante a sobrevivência

Natália só vive quando está a trabalhar, Sandra trabalha para pagar as contas do filho. Mas o que recebem não chega. Elas, as mulheres, são o elo mais fraco. Histórias de como é ser mulher numa cultura de salários baixos.

Teresa Abecasis (texto) e Joana Bourgard (fotos)

Natália está à janela de casa a fumar. Vive numa cave, em Alcabideche, no concelho de Cascais. A janela dá para os pés dos transeuntes no passeio, para o chão debaixo dos carros estacionados e para um gato que se esconde do sol que apareceu de repente e em força nos primeiros dias de Março.

É o início de uma bonita tarde de Primavera e Natália está à janela. Acaba o cigarro e fecha os estores de casa, “para os gatos não entrarem”. Agora, a única luz que tem vem de uma lâmpada economizadora, colocada num candeeiro no meio do chão da sala que também é quarto.

Senta-se na cama, à entrada de casa, e convida-nos a fazermos o mesmo. Está escuro na sala.

“O meu emprego foi a melhor coisa que eu tive”, diz, com a voz rouca. “Mudei de feitio e de maneira de ser”.

Tem 57 anos e trabalha há 11 num lar na Parede. O lar é a sua segunda casa. Os colegas são a segunda família. A primeira: os pais, os seis irmãos, os dois filhos e o neto. Natália depende dos pais para sobreviver.

No lar, Natália trata dos utentes, que vão dos 70 aos cem anos. Recebe 560 euros por mês para “fazer de tudo” - desde dar banhos a levantar reformas, passando por distribuir iogurtes no bar. Trabalha em turnos, normalmente no da manhã.

Entra antes das 7h00 e sai depois das 15h00. No lar, sente-se a pessoa mais feliz do mundo.

Mas, quando regressa a casa, é uma pessoa diferente. Senta-se na cama, em frente à televisão e vê a novela das 18h00, das 19h00, das 21h00... Ou dorme. Passa as horas livres, as folgas e as férias fechada em casa, com os estores corridos.

“Às vezes, ouço a vizinhança dizer ‘não está ninguém, a Natália não está’. Eu ouço e estou aqui caladinha, não digo nada”. Não sai de casa para não gastar o dinheiro que não sobra.

Daqui a uma semana vai entrar de férias e já está ansiosa porque não tem para onde ir ou o que fazer. “Vou visitar a minha mãe, e depois vou visitar a minha mãe, e depois vou visitar a minha mãe”.

Os pais moram em Oeiras. Natália visita-os com frequência, depende deles. Volta sempre carregada. “Os meus pais dão-me queijo, peixe, carne, fruta, óleo, azeite, batatas, cebolas.” Só assim, diz, consegue sobreviver.

Dos 560 euros que recebe todos os meses, 260 vão directamente para a renda da casa, 112 para uma dívida que tem no banco, 61 para o passe. Sobram-lhe cerca de 120 euros para pagar a alimentação, telemóvel e as contas da casa - água, luz, gás.

Como faz? O dinheiro não estica, mas Natália vai esticando os prazos.

“Eu só pago quando está para chegar o corte”. Pega no telemóvel para mostrar como é. “Hoje estava eu muito bem quando recebi uma mensagem. ‘Ai, credo, o que é que se passa?’ E vejo assim… Eu gosto muito é de ler isto. ‘Evite o corte, pague até ao dia 15/03’.”

Era a conta da electricidade e o último aviso para pagá-la. Natália paga tudo, “mas tem é de vir o [aviso de] corte”.

Também no lar onde trabalha vai acumulando dívidas das refeições que pede de vez em quando e que depois paga com os subsídios de férias e de Natal. “Nós temos um ordenado. Não temos de estar a pedir uma sopa e um pão. Temos o ordenado”, repete.

Uma cultura de salários baixos

Natália recebe um pouco mais do que o salário mínimo (505 euros). E, ainda assim, fazer contas faz parte do seu dia-a-dia: é uma estratégia de sobrevivência.

Em 2005, 5% dos trabalhadores portugueses recebiam o salário mínimo. Em 2014, essa percentagem subiu para 12,9%. São mais de 465 mil pessoas, segundo dados da Comissão Europeia.

As mulheres são as mais afectadas porque há mais mulheres trabalhadoras a ganhar o salário mínimo (17,5%) do que homens (9,4%).

Mesmo entre os que recebem mais, os valores médios não se afastam muito dos valores mínimos. Mais uma vez, são as mulheres as mais prejudicadas. No 4º trimestre de 2014, o rendimento médio mensal líquido dos trabalhadores por conta de outrem era de 818 euros. No caso das mulheres, o valor baixa para 751 euros.

“Salário mínimo significa dificuldades”

Aceita contar a sua história, mas não quer ser identificada. Por isso, chamamos-lhe “Sandra”, que não é o seu verdadeiro nome.

Tem 25 anos e é auxiliar de acção educativa numa creche na zona de Carnide, em Lisboa. Recebe o salário mínimo, aumentado recentemente, mas garante que nem sentiu a diferença.

Desde Outubro do ano passado que o mínimo que um trabalhador com contrato, a trabalhar a tempo inteiro, pode ganhar é 505 euros. Tirados os descontos obrigatórios, chegam à conta da Sandra cerca de 460 euros por mês.

Foi mãe adolescente, tem uma casa própria e trataria do filho sozinha se conseguisse. Desde que a criança nasceu, há oito anos, que fez questão de assumir as suas responsabilidades, mas precisou da ajuda da mãe.

Estava a tirar o curso tecnológico de acção social (ensino secundário) quando ficou grávida. Na altura, o namorado quis que ela fosse trabalhar para assumir as despesas da família, enquanto ele continuava desempregado. Ela não aceitou e seguiram cada um o seu caminho. Terminou o curso, foi estagiar e está a trabalhar há três anos.

Sandra conta a sua história, mas não quer identificada

Para Sandra, receber o salário mínimo significa ser dependente. “Significa ter dificuldades. Se eu recebesse um bocadinho mais, não precisava de ter ninguém a ajudar-me. Aí podia ser mesmo independente”.

A mãe, que ganha cerca de 600 euros, acabou por ir viver com a filha e partilham as despesas. Mas as contas da criança e a renda da casa, diz Sandra orgulhosamente, é ela que paga.

Não sobra muito. Dos 460 euros, subtraímos 250 para a casa. Ficam 210.

Como muitos outros pais e crianças, Sandra e o filho saem de casa por volta das 8h00 todos os dias e regressam quase 12 horas depois. A partir de casa, apanham dois autocarros para chegar à escola. Depois, se o tempo estiver bom, Sandra segue a pé durante 15 minutos até chegar à creche onde trabalha.

Entra às 9h00 ou às 10h00 e sai às 18h00 ou às 19h00. O que significa que o filho tem de estar inscrito em três prolongamentos na escola - um de manhã, a partir das 8h00, dois à tarde, até às 20h00.

Quando vão às compras, Sandra e o filho comem fora, “uma extravagância”. “Lá vamos ao McDonald’s...” No início do ano lectivo, a Cáritas ofereceu o material e os livros escolares do filho. No Natal recebeu um cabaz de alimentos. A roupa vem de amigos ou instituições.

Sandra não se queixa. Sente que tem tudo o que precisa e está concentrada em dar ao filho tudo o que não teve. “Já lhe disse que ele tem de ir para faculdade”.

Uma equação difícil

No dia em que falamos com a Sandra, apanhamo-la à saída do emprego e acompanhamo-la na última etapa da sua maratona diária. Andar até à escola do filho, apanhar o primeiro autocarro para casa e depois o segundo.

Sandra e o filho a caminho de casa, no fim do dia

No autocarro, a criança mostra-se aborrecida. Teve um teste de matemática e “só” teve “Bom”. Errou três perguntas, uma delas um “problema” que valia dez pontos.

O problema envolvia dois meninos e duas laranjas. Um deles comeu 0,8 décimos da laranja e outro 0,6 décimos. Era preciso pintar os gomos que os meninos comeram e ele enganou-se.

À volta com outras contas, Sandra tem dificuldades com outras variáveis. “Penso continuar no meu trabalho, gostaria de ganhar um bocadinho mais”. Mas não há nada que gostaria de fazer? “Gostava de tirar a carta, mas agora não tenho tempo. O dia está todo contado.”

A Natália sobra-lhe mais tempo, mas vai-lhe faltando força. Lembra-se de dias melhores, quando era mais nova. “Tinha dois empregos. Agora só tenho um. Já não tenho capacidade para dois”.

Apesar disso, está sempre disponível para acompanhar os utentes do lar às consultas, fora do horário normal de trabalho, e assim ganhar um dinheiro extra. Ligam sempre para ela. Mesmo quando está de férias.

A única altura em que não está disponível para trabalhar é no Ano Novo. Dia 31 de Dezembro e dia 1 de Janeiro podem pô-la a trabalhar que ela não vai, garante. “Estou aqui fechada, com a minha garrafa de champagne, a ver televisão. No dia 1, levanto-me, toda fresca e airosa, vou para o cafézinho de uma amiga e estou lá a comemorar. Dia 2, vou trabalhar”. E os outros dias são iguais.

Renascença © 2015

Reportagem: Teresa Abecasis (texto) e Joana Bourgard (fotos).
Web design: Pedro Martins
Web development: Tânia Barreira
Infografia: Rodrigo Machado