Reportagem

Muro. Colorir as paredes pode dar cor à vida das pessoas?

25 mai, 2017 - 08:00 • João Carlos Malta , Joana Bourgard

Em Marvila, Lisboa, nos próximos quatro dias, começa-se a responder à pergunta. A 2.ª edição do festival Muro trará à freguesia uma galeria de arte a céu aberto. Em bairros onde o preto e o cinzento imperam, há um artista local que sonha pintar todos os bairros de tantas cores quantas houver.

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LS olha em volta e atira “isto é tudo a preto, cinzento e branco”. As paredes dos blocos de prédios que encaixotam quem ali vive degradaram-se ao ritmo dos anos. O "grafitter" tem por isso um sonho: “Colorir Marvila inteira. Se me derem luz verde, vou a todas”.

Para já, LS, ou Luís Segadas, filho de Marvila, freguesia da zona oriental de Lisboa, está a começar por uma parede lateral de um prédio no bairro dos Coruchéus, mesmo ali à frente do campo do Oriental. Ele é o artista local convidado pela organização do 2.º Festival Muro LX_ 2017, que a partir de quinta-feira e até domingo, decorre na zona oriental da cidade, e que junta mais de 30 artistas internacionais.

Aos 32 anos, LS não tem dúvidas. “É preciso muita cor, o bairro precisa de cor. As pessoas ao olhar para isto vão ter mil ideias.”

É isso que ele está a fazer, num mosaico colorido com quantas cores quantas se possa imaginar, sobressai o olho de alguém por detrás de um manto.

“É o olhar do bairro, do que fica na expectativa. Eu também sou desconfiado”, garante Luís, ao mesmo tempo que explica que é por isso que não fala muito. Pode não dar muita confiança, mas a conversar é sempre torrencial.

Mesmo olhando-se ao espelho desta forma, LS é o elo de confiança entre os moradores do bairro e os artistas que vêm de outras zonas de Portugal, mas também do Brasil, do México ou da Venezuela. Quem o diz é Godmess, de 28 anos, do Porto.

“O artista aqui do bairro tem facilitado tudo, tem sido surreal. Já estou habituado a este tipo de eventos, as pessoas acabam por aderir, mas aqui foi tudo mais fácil. Os moradores passam, gostam, falam das janelas”, conta.

LS confirma que as pessoas estão ávidas de novidades. “Eles estão contentes, até agradecem de estarmos a pintar as fachadas. É cor, entendes? E estas pessoas estão numa varanda e não vêem nada. De um momento para o outro, é um festival de duas semanas com caras novas. É diferente”, sintetiza.

Essa é mesmo a ideia da organização do Muro LX_ 2017, segundo Inês Machado, do departamento de Património e Cultura da autarquia lisboeta. “Queremos que as pessoas do bairro conheçam pessoas de fora. Estes bairros estão muito fechados sobre si próprios, seja pela natureza das pessoas que aqui moram, seja por causa das suas características sociais e económicas”, explica.

Depois de no ano passado este festival ter passado pelo Bairro Padre Cruz, que, depois do Muro, passou a ter passeios semanais de turistas a quererem ver a “street art” que encheu as fachadas dos blocos, este ano a escolhida foi Marvila.

Criar novas centralidades e novos pólos culturais em locais mais deprimidos é o mote. LS acredita que o Muro vai trazer mais negócios para os comerciantes de Marvila. “As pessoas vão ter o que ver”, diz.

Ilegal, legal, ilegal, legal

A tensão no “street art” entre o legal e o ilegal, entre a institucionalização desta expressão artística ou a rebeldia e liberdade, está sempre presente. Apesar de se orgulhar desta última obra, LS diz que anda sempre entre o "grafitti" legal e o ilegal. Mas é desenhar onde proibido o modo mais apetecido de se exprimir.

“O ilegal é o que mexe mais, estares aqui numa fachada oito dias é bonito à vista, lidas com novos artistas, os locais batem palmas e dizem que és artista. Mas se fores ilegal, és um vândalo. Eu faço as duas”, lembra.

Foi assim que começou, aos 12 anos. Era um puto rebelde, pegou nas latas de "spray" e saltou para a linha de comboio que atravessa o bairro. Primeiro era um, depois dois, depois muitos. Formaram a Namek Crew (numa referência à série "manga" japonesa "Dragon Ball"). Não havia internet, mas havia adrenalina.

“Andava na escola a pedir uma moeda para comprar um bolo. Mas era mentira. Era para ir comprar latas. Depois quanto mais fazes, mais queres. É viciante. Vais no comboio e dizes: 'Olha o meu desenho'. Quando dás por ti queres espalhar por Portugal inteiro”, recorda.

Em 20 anos tornou-se profissional e agora faz de tudo um pouco desde a personalização de roupa à decoração de quartos. Nestes dias, vive uma experiência diferente. Nunca tinha pintado um mural tão grande. Maior só a ambição e a comparação que faz com os artistas já com mais currículo do que ele.

“Vou dar 20-0, estou-te a dizer. O que queres que te diga? É verdade”, afirma com ar gingão.

Da Venezuela com cor

A 2.ª edição do Muro LX_ 2017 tem a cultura ibero-americano como mote. E, por isso, há dezenas de artistas que saltaram o Atlântico para estar em Lisboa. Um deles é Flix, um venezuelano que deixou por uns meses o país em pré-guerra civil, para fazer uma residência artística com os miúdos de Marvila.

Quem passou por estes dias junto aos terrenos à Feira do Relógio, viu o artista a pintar as três casas de banho que ficam naquele espaço. Com a ajuda de alunos de colégios e escolas da zona e com a geometria dos azulejos e mosaicos portugueses recriou, através da escolha das cores, Portugal e a Venezuela.

Com as latas de "spray" na mão, numa estrada tão grande quanto a falta de movimento, o artista venezuelano sorri quando fala da interacção com os jovens e com a comunidade local. “Muy bonita”, dispara. “Há uma aprendizagem mútua e eles participam na transformação do meio envolvente e pensam em coisas mais produtivas para a cidade.”

“O que me surpreendeu é que eles pintam muito melhor do que eu na idade deles. São muito interactivos e criativos”, acrescenta.

Flix não tem dúvidas de que estas intervenções são muito importantes porque ajudam a mudar o espaço e as pessoas.

“Um dos miúdos que participou esteve envolvido num caso de roubo no colégio. Em conversa com ele, disse que queria concentrar-se noutras coisas. Isto pode renovar o espírito”, acredita.

Das Belas Artes para a rua

O lado “underground” permanece presente num evento deste género, mas há também quem tenha percursos que passaram pelas cadeiras da academia. Se Flix é também arquitecto, Godmess fez todo o percurso da Soares dos Reis, escola artística do Porto, até à Faculdade de Belas-Artes.

“Doutorou-se” depois no currículo invisível que se aprende nas paredes das cidades. “A minha inspiração vem de sair à rua e perceber um enorme tipo de linguagens, desde o autocolante até ao mural gigante, até uma instalação. Temos é de estar abertos a receber”, reconhece.

Da arte figurativa à abstracta, procura que as obras sejam percebidas de imediato pelas pessoas, mas tenham algo que as faça pensar.

“Tento cruzar a subversão com coisas mais poéticas. O festival tem um tema geral e fiz uma família que podia ser de qualquer nacionalidade que está à procura de um lugar. Todos procuramos um lugar melhor, uma casa”, ilustra.

LS também quer chegar a esse sítio, ou, melhor ainda, construí-lo. “Marvila tem de ser conhecida. Tal como falas de Alfama e do Bairro Alto onde há festas, Marvila não é só marchas, tem muito potencial”, sentencia.

Comentários
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  • Carlos
    25 mai, 2017 Penafiel 17:22
    Acho bem quando se faz coisas bonitas como estas das fotos (já agora os meus parabéns). Já os pichados, é só para sujar, dar mau aspeto, e não acrescentam nada. Devem ser criminalizados.

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