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Trump na frente externa: imprevisível, inconstante, ignorante

29 abr, 2017 - 13:00 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA

Não sabia nem queria saber como funciona o mundo. Mas agora que a frente externa lhe trouxe créditos internos, Trump poderá apostar nesses conflitos para desviar as atenções das derrotas que tem sofrido.

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Peter Baker é um dos mais famosos e prestigiados jornalistas americanos. Durante cerca de 20 anos cobriu a Casa Branca quer para o “New York Times”, quer para o “Washington Post”. Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama são presidentes com quem lidou de perto nesses 20 anos.

Com grande experiência também em assuntos internacionais, no ano passado fez as malas e foi para correspondente do “NY Times” em Israel. Em Novembro, Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos e o jornal entendeu que não podia prescindir da experiência de Baker na cobertura da Casa Branca.

Após cinco meses em Jerusalém, o jornalista regressou a Washington e à rotina que tão bem conhecia. Hoje, após três meses de presidência Trump, confessa a inutilidade da sua experiência na cobertura deste presidente: “Se alguém pensa que cobrir três outros presidentes ajuda na cobertura deste, a realidade veio mostrar o contrário”. De cada vez que pensa em algo como “esta é a forma como o presidente faz as coisas” ou “a Casa Branca nunca fará as coisas desta forma” concluiu quão inútil era essa experiência para tentar perceber um presidente que força todos os limites, rejeita todos os protocolos e ignora todos os precedentes para fazer as coisas como ele entende que deve fazê-las. “Um repórter que nunca tenha posto os pés na Casa Branca antes de 20 de Janeiro tem tantas hipóteses como eu de prever o mais imprevisível dos presidentes”, escreveu Peter Baker no seu jornal a propósito dos primeiros 100 dias de Trump na Casa Branca.

Imprevisibilidade, eis, pois, uma característica marcante de Trump.

Neste sábado em que completa 100 dias na presidência, preparava-se para anunciar num comício marcado para a Pensilvânia que os EUA iriam abandonar o NAFTA — o acordo de comércio livre com o Canadá e o México. A decisão terá sido tomada no início da semana, cumprindo uma das promessas feitas na campanha eleitoral. Trump sempre classificou o acordo como um “desastre” para os EUA.

No entanto, à medida que a decisão foi sendo conhecida nos círculos mais restritos vários responsáveis tentaram dissuadi-lo, com destaque para os assessores mais moderados e adeptos da globalização e do comércio livre, para o secretário da Agricultura e para o próprio presidente mexicano e o primeiro-ministro canadiano.

O secretário da Agricultura mostrou-lhe um mapa em que assinalou as áreas do país que seriam mais prejudicadas com o abandono do NAFTA, porque os produtos que exportam passariam a ser taxados ao entrarem no México, ameaçando os negócios de milhares de agricultores americanos. Sucede que essas zonas são justamente aquelas que votaram esmagadoramente em Donald Trump.

As conversas com Peña Nieto, do México, e com Justin Trudeau, do Canadá, foram amistosas e os dois lideres dos países vizinhos propuseram negociações sobre o tratado em vez do seu abandono e respectivas retaliações comerciais.

A meio da semana, Trump já tinha optado por negociar os termos do acordo em vez de o denunciar, deixando cair mais uma promessa eleitoral susceptível de abrir uma “guerra” comercial com os países vizinhos na qual os EUA poderiam ser talvez os mais prejudicados.

Inconstância, eis, pois, outra característica marcante de Trump.

Este foi apenas o último exemplo das constantes reviravoltas que têm marcado o seu mandato como presidente. Enquanto candidato, Trump comprometeu-se junto dos eleitores a concretizar inúmeras medidas de carácter populista que lhe renderam votos, mas cuja aplicação seria gravosa para a economia americana e até para os interesses estratégicos dos EUA. E a verdade é que muitas delas já foram esquecidas, naquilo que parecem ser assomos de pragmatismo e racionalidade por contraponto ao fervor ideológico e populista da campanha eleitoral.

Estão neste rol casos como o da prometida declaração da China como manipuladora da moeda no primeiro dia em funções. Promessa abandonada quando percebeu que abriria uma guerra comercial altamente lesiva para a economia americana e que necessitava da China para tentar resolver o problema da Coreia do Norte.

O recente encontro com o presidente chinês serviu, entre outras coisas, para aprender que o problema da Coreia do Norte “não é assim tão simples”, como o próprio Trump confessou ter percebido após dez minutos de conversa com Xi Jinping.

A hostilização a Pequim, aliás, tinha começado com um telefonema com a presidente de Taiwan em que Trump fez saber que poderia rever a política de reconhecimento da existência de apenas uma China. Seria uma atitude gratuita que inquinaria as relações com Pequim para sempre. O facto de Trump a ter verbalizado e posteriormente ter recuado em toda a linha só pode derivar da ignorância do alcance de tal afirmação.

Idêntica atitude teve quanto ao conflito israelo-palestiniano, ao prometer que mudaria a embaixada dos EUA em Israel para Jerusalém. Promessa abandonada quando percebeu que a medida não teria qualquer vantagem política e, pelo contrário, minaria por completo quaisquer veleidades de desempenhar um papel activo em negociações entre israelitas e palestinianos. Além de agravar a tensão na região. “Pormenores” que só percebeu quando o rei da Jordânia lhe explicou na Casa Branca o alcance da medida prevista, segundo confissão do próprio Trump.

A hostilização prometida para a China teve o seu contraponto simétrico na amizade desejada com a Rússia. Também aqui Trump foi incapaz de perceber que os interesses estratégicos de Putin seriam sempre incompatíveis com os objectivos ocidentais na Síria e na Ucrânia. Ao insinuar que poderia levantar as sanções a Moscovo e ao proclamar o seu desejo de estabelecer uma boa relação de cooperação com o Kremlin, esteve a um passo de se tornar um “idiota útil” de Putin. Sobretudo depois de uma campanha eleitoral em que o Kremlin tudo fez para derrotar a sua adversária e na sua “entourage” havia vários assessores com ligações suspeitas a Moscovo.

E se a este desejo de proximidade com Putin juntarmos as declarações críticas em relação à NATO — classificada como “obsoleta” — e a obsessão com a contribuição financeira de cada país-membro, o puzzle fica completo quanto ao desconhecimento de questões elementares de funcionamento do mundo.

Ignorância, eis, pois, outra característica marcante de Trump.

Ironicamente, apesar da ignorância sobre o mundo, acabou por ser na frente externa que Trump adoptou as medidas mais consensuais até agora. O bombardeamento da base aérea síria na sequência do ataque químico em Idlib cometido por Assad, e a bomba gigante lançada no Afeganistão sobre um refúgio do Estado Islâmico, foram as duas acções que suscitaram mais elogios do establishment político-mediático.

Para um homem vulnerável à lisonja e narcisista como Trump, esta circunstância pode gerar uma propensão para intervir militarmente noutros pontos de conflito, acabando por contradizer a plataforma isolacionista com que se candidatou. Sobretudo se as intervenções externas trouxerem dividendos políticos internos que tanto escasseiam de momento.

E naturalmente que quando pensamos num cenário desse tipo, a Coreia do Norte e o Irão vêm logo à mente. Dois casos muito diferentes da Síria e do Afeganistão, onde o preço político e humano a pagar por uma qualquer aventura militar seria altíssimo. No caso do Irão, a administração acaba de reconhecer que Teerão está a cumprir o acordo nuclear que assinou, o que distende a tensão. Mas no caso da Coreia do Norte a situação é bastante delicada e vai perdurar por muito tempo. O que poderá funcionar como o pretexto ideal para desviar as atenções das incontáveis contradições, manipulações, mentiras e acusações que na frente interna marcaram estes 100 dias.

Mas isso será matéria para outro artigo.

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