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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Deus: por Cormac McCarthy

30 nov, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


A reflexão de Cormac McCarthy esboça o subconsciente enquanto instrumento de uma entidade superior e projecta a linguagem (as palavras) enquanto tradução humana e imperfeita da verdade que nos é revelada por parábolas (imagens) por este Deus subconsciente.

Na revista científica Nautilus, o romancista Cormac McCarthy publicou um ensaio sobre o subconsciente e a linguagem que tem evidentes tonalidades bíblicas: “The Kekulé Problem – Where did language come from?”. O lastro teológico incomodou o ar do tempo, até porque McCarthy desafia de forma aberta algumas das ortodoxias vigentes, sobretudo o mantra darwinista. Ao longo do ensaio, McCarthy até goza com os donos deste jargão, afirmando várias vezes que “pessoas influentes” vão ficar escandalizadas. Sem demora, a New Yorker publicou uma peça de Nick Romeo que revela precisamente este incómodo: “Cormac McCarthy, afinal de contas, está descrevendo um agente antigo e moral que se interessa pelo nosso bem-estar e que revela as suas intenções através de imagens”. Nick Romeo tem razão para se sentir incomodado, porque a reflexão de Cormac McCarthy esboça o subconsciente enquanto instrumento de uma entidade superior e projecta a linguagem (as palavras) enquanto tradução humana e imperfeita da verdade que nos é revelada por parábolas (imagens) por este Deus subconsciente.

August Kekulé foi um químico do século XIX que se tornou famoso depois de ter tido um momento eureka durante o sono: Kekulé garantiu que percebeu finalmente a estrutura anelar da molécula da benzina depois de ter sonhado com uma cobra que comia a sua própria cauda, formando assim um anel com o seu próprio corpo. “É um anel”, gritou ao acordar. É este o problema de Kekulé: porque é que o subconsciente sabe mais do que nós? Porque é que o subconsciente nos tenta ensinar e resolver problemas, desde as equações químicas até aos dilemas morais, através de sonhos que nos transmitem mensagens codificadas em imagens e parábolas gráficas que depois nós temos de tentar compreender e explicar com a nossa linguagem composta por palavras? Na resposta, McCarthy diz-nos que temos de esquecer os jargões da psicologia, linguística e até do darwinismo. O escritor americano recusa a ideia da linguagem enquanto mecanismo biológico sujeito às leis da selecção darwinista. E é difícil não lhe dar razão. A linguagem não é um sentido físico como a visão. A visão, sim, poderá ter evoluído debaixo da grelha darwinista. Através de um organismo feito de lentes que filtram a luz, a visão do homem poderá ter evoluído como a visão do macaco, do leão, da baleia. A linguagem porém é diferente, porque só apareceu uma só vez e numa só espécie de mamíferos – o ser humano. Porque é que só apareceu no homem? Se a lei darwinista é universal, se a linguagem é um mecanismo biológico que evolui como outro qualquer, porque é que só apareceu na evolução do homem? Isto quer dizer que a sua origem não é biológica, é cultural ou teológica; a linguagem remete para um campo invisível e imaterial, não está presa à matéria.

Além do mais, é evidente de que a linguagem está mais ligada à arte e ao “inútil” do que a qualquer utilidade biológica. A linguagem não é necessária à sobrevivência e à perpetuação da espécie. Os outros cinco mil mamíferos sobreviveram sem linguagem. Neste ponto, os darwinistas dirão que há cripto-linguagens no mundo animal. Quando avistam um predador aéreo, os esquilos emitem um som que é diferente do som que emitem quando avistam um predador terrestre. Um falcão não é uma raposa – deveras útil, deveras darwinista. Sucede que este e outros códigos animais não entendem o que é específico da linguagem: a metáfora, a parábola, aquilo que remete para um significado que está para lá do óbvio, do útil. Como diz Cormac McCarthy, “a ideia de que uma coisa pode ser outra coisa é a essência da linguagem”. Estamos no campo da simbologia e da literatura: a baleia branca de Melville não é uma baleia branca, é um símbolo, uma metáfora, uma parábola universal, um pesadelo, um sonho.

Na verdade, a linguagem é um “mistério opaco”; nós “não temos acesso ao processo da linguagem”, não sabemos de onde ela veio. E, prossegue McCarthy, o mistério da linguagem (o efeito) está ligado ao mistério do subconsciente (a causa). Pouco ou nada sabemos sobre esse subconsciente, só sabemos que ele existe e que é sobremaneira persistente. Aliás, a maior característica do subconsciente é a sua persistência. Toda a gente tem três ou quatro sonhos que se repetem de forma cíclica. Porque é que regressamos sempre a essas mensagens cifradas que demoramos anos ou décadas a decifrar? Porque é que muitas ficam por decifrar? Porque é que o subconsciente insiste em tentar ajudar-nos ou avisar-nos? “É difícil fugir à conclusão”, afirma McCarthy, “de que o subconsciente labora debaixo de um impulso moral para nos educar”. Ou seja, McCarthy está a falar de Deus sem usar a palavra “Deus”. Apesar da linguagem científica, “The Kekulé Problem” encosta-nos a uma dos pilares da Bíblia: Deus comunica através de sonhos que são parábolas; diz-se muitas vezes na Bíblia que “o anjo do Senhor apareceu” a este e àquele. E quem é que nunca sentiu aquela estranha sensação de que aquilo que estamos a viver aqui e agora já foi vivido ou anunciado, apesar de não conseguirmos localizar com precisão o momento dessa revelação? Nós não sabemos o que é o subconsciente, diz Cormac McCarthy, nem sabemos como é que este ser espectral opera na nossa mente, mas sabemos que ele existe e que sabe muito mais do que nós; sabemos que ele recebe a sua informação não através dos nossos sentidos e inteligência, sabemos que ele tem acesso a um mundo ou a mundos exteriores e talvez superiores ao nosso; e sabemos ou intuímos que a nossa linguagem é uma tradução imperfeita e por palavras da perfeição que nos é comunicada por imagens e parábolas.

Confesso que não sei se a tese é verdadeira, mas sei outra coisa: é uma tese belíssima e um pilar essencial para quem quiser intuir a verdade do mundo para lá do óbvio e da matéria.

Comentários
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  • Vera
    04 dez, 2017 Palmela 23:11
    ok! é isso aí! como dizem os brasileiros. Nós somos matéria porque ocupamos espaço! os outros animais também ocupam espaço, como nós! mas nós pensamos e sai-nos tudo em palavras pela boca fora; até escrevemos, para não nos esquecermos! porque o nosso book de memórias vai falhando com o tempo! Os sonhos reflectem imagens: neles voltamos ao passado e quase que caminhamos para o futuro, só que, Deus trava o sonho! ficamos sempre a meio, porque o resto fica para um dia! um dia que já não temos voz para falar, talvez até possamos ouvir, mas falar não! o silêncio prevalecerá no vazio, porque o espaço que ocupávamos, deixou de existir para nós. Os outros animais também pensam! mas como não falam, podem sonhar à vontade! eles prevêem o perigo, coisa que a nós não acontece! quando vivem perto do ser humano, comunicam por gestos ou decoram sons repetidos por nós e percebem-nos! multiplicam-se como nós, porque se atraem, se ficarem muito próximos! então as partículas e as moléculas, são mesmo como diz as leis da física: corpos diferentes mas da mesma espécie, funcionam com a atracção da terra! Lavoisier dizia que: "na vida nada se perde, tudo se cria e tudo se transforma". Há dias vi num vídeo, um leão (de pé) abraçado a um rapaz, como se fossem grandes amigos da mesma espécie! dá que pensar! não dá? amigos de longa data!? talvez parentes! será?... Henrique Raposo, eu já esperava que o Sr. escrevesse qualquer coisa, como o que escreveu! mas pode aprofundar ainda mais a sua lógica! OK?
  • João Lopes
    01 dez, 2017 Viseu 10:42
    Excelente artigo de HR. «se a linguagem é um mecanismo biológico que evolui como outro qualquer, porque é que só apareceu na evolução do homem? Isto quer dizer que a sua origem não é biológica, é cultural ou teológica; a linguagem remete para um campo invisível e imaterial, não está presa à matéria…Na verdade, a linguagem é um “mistério opaco”; nós “não temos acesso ao processo da linguagem”, não sabemos de onde ela veio».