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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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​NEM ATEU NEM FARISEU

Porque é que tantas mães se sentem mal no papel de mãe?

03 nov, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


Adiamos até à demência a chegada do primeiro filho e, durante esse largo período de tempo, projectamos ideias e fantasias sobre a paternidade e maternidade.

O título desta crónica é retirado de uma peça da “Time” (19 de Outubro) que tentou responder a um problema já abordado nesta coluna: o mal-estar da mãe dos nossos dias. Numa época marcada por um bem-estar material e médico sem precedentes, porque é que tantas mães sentem uma permanente desilusão com a maternidade? Porque é que sentem que estão sempre a falhar?

A peça da “Time” vai no sentido certo: fala-se muito no tema abstracto chamado “filhos”, mas fazem-se poucos filhos; a maternidade está presa em abstracções, ideologias e manias que projectam um Filho abstracto, um Parto abstracto e uma Maternidade abstracta que pouco ou nada têm que ver com o caos criativo que é ter filhos reais e concretos. As mães de hoje deixaram-se rodear por uma multidão de manias e modas sobre partos, comportamento, aleitação, alimentação, etc. Esta miríade de opiniões tem várias origens a montante, mas a jusante tem sempre a mesma consequência: a permanente culpabilização das mães.

Elas sentem-se culpadas porque não tiveram o tal parto natural e “trendy” recomendado por gurus anti-hospital, anti-medicina, anti-vacinas, anti-anestesia. Sentem-se culpadas porque não conseguem alimentar o bebé apenas com o leite natural; é como se dar leite em pó e suplemento fosse um pecado cardinal equivalente ao espancamento, é como se tivéssemos de viver num estado de pureza primitiva, quais Neandertais com iphone, é como se tivéssemos de ter vergonha por possuir meios químicos e médicos que permitem diminuir a dor e aumentar as possibilidade de sobrevivência do bebé. Sentem-se culpadas quando dão leite com lactose e pão com glúten. Sentem-se culpadas quando dão água da torneira à criança. Sentem-se culpadas quando a criança come doces; já vi gente mais indignada com a ingestão de doces do que com a evidente má-criação. Sentem-se culpadas quando a criança faz uma birra em público, como se uma criança a fazer birras fosse um estranho fenómeno nunca antes avistado. Sentem-se culpadas porque as pessoas não suportam uma criança a chorar num avião ou autocarro, apesar de estarem sempre prontas a opinar sobre um choro que evidentemente não conhecem. Sentem-se culpadas porque estão cansadas do trabalho e não conseguem o tal “tempo de qualidade” exigido pelas revistas de grã-finas que não têm de trabalhar. Sentem-se culpadas porque a sogra diz que o ketchup dos meninos não é orgânico. Sentem-se culpadas porque foram sugadas para uma guerrilha moralista que circula entre mães: a mãe do 3.º esquerdo censura a mãe do 1.º direito, que por sua vez censura a mãe do rés-do-chão; depois censuram em conjunto a mãe do 2.º direito, que volta a ser censurada pela sogra e pela própria mãe.

A desilusão é reforçada pelo largo tempo que a minha geração gasta numa espécie de segunda adolescência. As pessoas estão a ter filhos aos 30 e mesmo aos 40. Nós adiamos até à demência a chegada do primeiro filho e, durante esse largo período de tempo, projectamos ideias e fantasias sobre a paternidade e maternidade.

Como é óbvio, esta utopia criada num estirador não sobrevive aos primeiros choros e dores. A peça da “Time” fala de uma mulher de quarenta anos, Margaret Nichols, que, na projecção do seu primeiro filho, criou um futuro ideal de acordo com um dos mantras em voga: parto natural e aleitamento natural durante pelo menos dois anos. Problema? A sua biologia não obedeceu às suas ideias.

Durante o parto caseiro e anti-epidural, Margaret sentiu dores insuportáveis que a fizeram “uivar como um animal”; acabou por ir para o hospital onde, depois da anestesia, teve o seu bebé, Bo. Já em casa, pretendia amamentar Bo com o seu leite durante dois anos, mas o corpo voltou a não colaborar. Margaret sente-se hoje desiludida. Diz até que atravessa um período de “luto”. Luto? Como se atreve? Ela está bem e, acima de tudo, o bebé está bem, é saudável. Como se atreve ela a dizer que está de “luto” só porque não deu à luz numa piscina moderninha e só porque dá leite em pó ao bebé?

A guerrilha entre mães, entre sogras e mães, entre mães e filhas, entre amigas, está a destruir o prazer da maternidade; a cacofonia de manias e ansiedades está a bloquear a beleza de cada parto, de cada mulher, de cada bebé.

Esta trindade (parto, mãe, bebé) é sempre diferente, porque cada uma contém os seus defeitos e fragilidades que não encaixam neste asfixiante mito da mãe perfeita, da mãe deusa, da mãe juíza de outras mães, da mãe que lê bulas de remédio como um farmacêutico fanático, da mãe que lê a fórmula química e energética de todos os alimentos, a mãe que está sempre com medo do julgamento moral de uma sociedade que não faz filhos mas que insiste em palestrar sobre o tema.

PS: falarei dos pais na próxima semana.

Comentários
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  • Rita Teles
    07 nov, 2017 10:36
    Espreitem os textos da Teresa Power, mãe de seis!!! Podemos viver de outra forma, vivemos de outra forma e é tempo de o dizer em "voz alta"!
  • mara
    07 nov, 2017 Portugal 09:32
    Fui mãe há mais de cinquenta anos, sofri na pele muito mais do que descreve aí, sofri um pai que acima de tudo só via uma mamã a qual não podia ver outra mulher ao lado do filho além da querida mamã, sofri horrores durante a gravidez, antes de engravidar sofri o horror de ouvir vezes sem conta ser estéril e não poder dar-lhe um neto, engravidei sofri horrores, trabalhei com dores horrendas, muitas vezes julguei abortar, não passei grandes fomes mas muitas vontades de comer, não sei mesmo como não perdi o bebé, nasceu a avó não o olhou e o pai também não por não ser do sexo que idealizaram, hoje se tivessem domínio sobre ele obrigavam-no a fazer uma operação para mudar de sexo...A vida é uma grande madrasta para alguns e o pior que uma jovem pode fazer é ir viver com a sógrinha, quando ela é de marca tortinha....Espero que no caso Masculino o Sr. Dr. lhe explique como devem ser os pais, porque infelizmente há por aí muitos que abandonam os filhos....
  • Eugénia Tomaz
    05 nov, 2017 Benfica 15:31
    Caro Henrique Raposo, omitiu referir o mais importante no mal-estar das mulheres que é o de serem os homens, no espaço público, a falarem dos assuntos femininos como porta-voz da mulher não lhes concedendo espaço a pronunciarem-se sobre as suas próprias realidades e pensamento.
  • Cf
    04 nov, 2017 Benedita 08:01
    Fui mãe as 28, estou fora das estatísticas 😀. Ainda me tentaram torturar por causa do leite, consegui reagir. Se voltasse a ter filho usava sempre uma t-shirt a dizer: "Hormonas em ebulição, perigo de explosão"
  • Manuel Guerreiro
    03 nov, 2017 Ermidas-Sado 16:41
    Brilhante, Henrique! Quem conheceu como eu, em tempos de muitas e grandes dificuldades, mães com onze filhos criados com grande sofrimento mas também com grande dignidade, estar a comparar esses tempos de míngua com os de agora, não deixa de ser uma ofensa aos que no fundo padeceram e sofreram para que hoje sejamos o que somos. Sim, porque foi graças a esses tempos de miséria que se arranjaram as tais famosas toneladas de ouro que hoje estão a ser esbanjadas e não investidas em porporcionar melhor qualidade de vida, logo, a maternidade/paternidade acontecer no tempo recomendável e não em idade de se ser avó.
  • carla
    03 nov, 2017 16:17
    Fui mãe há 18 meses e senti na pele quase tudo que descreve. Tive parto de cesariana porque a bebé estava sentada e não consegui amamentar em exclusivo. Mas não me sinto nada culpada, tenho uma menina linda, feliz, cheia de vida e bem nutrida e é isso que me importa. Na altura não me consegui "esquivar" às acusações indirectas de que a bebé tinha fome e blá blá blá, senti-me muito frustrada por não conseguir fazer a minha parte de mãe, mas quanto mais enervada estava pior. Hoje eu vejo isso e espero que de futuro essa lição me valha de alguma coisa. Temos de fazer orelhas moucas ao que dizem, seguir o nosso instinto
  • Rui
    03 nov, 2017 Lisboa 14:59
    É mesmo isto! Força Mães!!
  • Manuela
    03 nov, 2017 lx 14:49
    Pois é, tem razão! há mães, que não nasceram para ser mães! também há pais, que não nasceram para ser pais! há pessoas que julgam que a vida tem que ser 'um mar de rosas'! a criança chora, porque é chata! dá-se um estalo na criança, que passa da choradeira à gritaria!!! por que será que uma criança chora? devia estar caladinha, enquanto a mãe está no facebook! que tragédia!!! é isso mesmo! o facebook, é a maior tragédia de uma mãe de vinte e poucos anos, é horrível, quando uma mãe, ainda nem sequer tem 20 anos. Se existe uma avó já com mais de 60 anos, a criança como ainda não sabe falar, tem o direito de chorar, se algo a incomoda ou se lhe apetece simplesmente chamar a atenção da avó, que lhe dá mimos, que ela gosta! pois gosta! porque criança, não é boneco de enfeitar a cama da mãe! criança é uma criatura que gosta do convívio, da companhia daqueles que lhe são próximos. Pobre daquele, que nasce de uma mãe formada em facebook...
  • Leonor
    03 nov, 2017 Setúbal 12:35
    Tal e qual!! Excelente artigo!
  • João Lopes
    03 nov, 2017 Viseu 10:29
    Excelente artigo!