27 out, 2017
O caso do juiz da Relação do Porto é um caso clássico da aliança involuntária que une o pior tipo de beato ao pior tipo de ateu. Quando usa de forma selectiva a Bíblia para justificar o seu fanatismo, o brigada do reumático está a fazer um serviço ao ateísmo, que, desta forma, pode derramar do alto da sua preguiça moderninha a seguinte sentença: “Como vêem, a Bíblia é um texto retrógrado e violento”. Digo-o há muito tempo e estou cada vez mais convencido de que tenho razão: o fanatismo ateu alimenta-se do fanatismo beato e vice versa; nos próximos anos, este choque intensificar-se-á entre a arrogância politicamente correcta e a boçalidade do antipoliticamente correcto. A verdade, sobretudo a verdade bíblica, será a grande vítima deste choque de intolerâncias.
Esclavagistas, segregacionistas e marialvas como este juiz sempre usaram a Bíblia para justificar as suas práticas imorais. A chamada “cintura bíblica” dos EUA também é a cintura da escravatura, segregação e do actual trumpismo; este racismo tinha e tem uma maquilhagem bíblica garantida por pastores que corrompem todos os dias o Evangelho; estes pastores legitimam de forma directa ou indirecta o nativismo branco, que é – em si mesmo – a negação da irmandade humana desejada por Jesus e São Paulo. Como mostra o filme “Doze anos de Escravo”, o sul dos EUA maquilhou sempre a escravatura com passagens bíblicas não contextualizadas. Sim, é verdade que a Bíblia nunca invalida de forma explícita a escravatura. A Bíblia nunca diz “ter escravos é proibido”. Contudo, foi na Bíblia que os grandes críticos da escravatura e da segregação (Vieira, Martin Luther King, Lincoln) encontraram as suas referências. O livro sagrado é a fonte mais forte de Direito Natural. Fica porém uma pergunta óbvia em cima da mesa: se a escravatura é um mal tão absoluto e evidente, porque é que a Bíblia não tem nenhuma passagem de condenação explícita desta prática, deixando apenas algumas pistas para essa condenação, visíveis sobretudo nas cartas de Paulo (Gl 3, 28; Cl 3, 11; 1 Cor, 12, 13)? Porque a Bíblia é um conjunto de textos escritos por homens historicamente situados. A Bíblia não é a voz directa de Deus. A Bíblia não é um livro, é uma biblioteca. Não é um livro de um autor, é um conjunto de dezenas de interpretações da voz de Deus escritas ao longo de quase dois milénios. É a história da Revelação. E o Evangelho é o momento máximo dessa Revelação, é o momento em que a interpretação e a escrita dos homens toca na verdade com a ponta dos dedos. Enquanto ponto mais alto e perfeito, o Evangelho infirma uma parte do espírito do Antigo Testamento.
A violência do código moral apresentado por Moisés em Levítico e Deuteronómio é sem dúvida um dos pontos desautorizados pela misericórdia de Jesus. É por isso que o juiz do Porto tem uma visão preguiçosa ou desonesta da Bíblia. Quando diz que a Bíblia condena a “mulher adúltera”, o tal juiz do Porto está citando passagens destes dois livros do Antigo Testamento, Levítico e Deuteronómio, que recomendam, entre outros mimos, o apedrejamento da mulher adúltera (Lv 20, 10; Dt 22, 22), do homem adúltero, dos homossexuais, das prostitutas, etc. A violência desta e de outras passagens do Antigo Testamento tem um contexto: o povo judeu estava em guerra pela sobrevivência política e religiosa; estes são textos marcados pelo pó, pelo sangue e pelos tambores. Moisés, Josué, os juízes e mesmo os reis como David e Salomão lideravam um povo em permanente estado de emergência; o Levítico e Deuteronómio constituíam o código civil de um Estado nascente, de um Estado em guerra num dado momento histórico e num dado contexto geopolítico. Por outras palavras, o código deuteronómico é relativo, não é universal; é relativo a uma situação histórica, não pode ser elevado a moral universal. Só para termos uma ideia desta brutalidade relativa a um tempo histórico, convém recordar que o código deuteronómico relativiza a violação sexual: “Quando um homem encontrar uma donzela virgem que não esteja noiva e, violentando-a, dormir com ela, se forem surpreendidos, o homem que dormiu com ela dará ao pai da donzela cinquenta siclos de prata e ela tornar-se-á sua mulher, porque abusou dela” (Dt 22, 28-29). Isto não é uma condenação moral da violação e do violador, é a aceitação da violação enquanto prática social; é uma espécie de “estragaste, pagaste” aplicado à dignidade da mulher.
O único código universal que reina sobre todos os contextos históricos é misericórdia dos Evangelhos. O que faz Jesus no episódio da mulher adúltera? Protege-a da multidão e dos fariseus (os tais beatos) que desejavam apedrejá-la no fiel seguimento da lei antiga de Moisés. Quando diz “quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra” (Jo 8, 7), Jesus está a funcionar como um supremo tribunal que invalida a sentença anterior. Jesus, filho de Deus, invalida Moisés, um general humano; o Novo Testamento aperfeiçoa o Antigo Testamento; o relativismo da história do povo escolhido abre-se à misericórdia universal. Nada disto quer dizer que Jesus aceita o adultério. Depois de proteger a mulher adúltera, Jesus diz “vai e de agora em diante não voltes a pecar” (Jo 8, 11). Qual é então a moral da história? O adultério continua a ser um pecado pessoal e motivo para divórcio, mas que não é um crime público punível com um assassínio colectivo (apedrejamento) ou individual (vingança do marido). Não ler a Bíblia desta forma é um adultério teológico – um adultério cometido por fanáticos e por ateus.