13 out, 2017
É um momento triste: quando entram no quarto da maternidade, os familiares só têm olhos para o bebé. A mãe, que foi o sofrido portal daquele milagre, que foi e continua a ser a personagem principal da história e que está ali com dores infernais, não é tida nem achada. Qual pau de cabeleira que estorva o encantamento que avós e tios sentem pelo bebé, a mãe fica esquecida, passa a figurante, um figurante tão descartável como aquela ridícula bata azul que a deixa ainda mais desprotegida.
Já em casa, durante os primeiros meses, a história repete-se. Familiares e amigos entram e correm em direcção ao berço, querem pegar e elevar a fofura no ar, querem apertar as bochechas, querem sentir nos seus olhos o primeiro olhar do bebé. Nesta sofreguidão, esquecem a mãe, não olham para ela dois segundos. Ainda há dias uma amiga me dizia “é tão raro alguém perguntar como estou, se ando a dormir, se tenho dores, como me sinto, se estou bem, isto é muito difícil, percebes?”. Percebo. E esta sensação de abandono é ainda mais evidente se estivermos perante o primeiro filho, esse terramoto de três quilos e meio; a jovem mãe ainda está à procura das coordenadas certas dos sentimentos, ainda não sabe bem o que sentir; sente-se sozinha, sente o corpo e a cabeça diferentes, precisa mais do que nunca do amor de familiares e amigos, mas estes só têm olhos para a pequena criatura que a consome como um gremlin viciado em leite e insónias.
É por isto que o meu protocolo é há muito o seguinte: as mães têm prioridade sobre os bebés; na maternidade ou já em casa, falo primeiro com elas, dou-lhes um beijo, um abraço; só depois é que me vou inteirar das bochechas rosadas do pequeno ser. A mãe deve ter prioridade emocional sobre o bebé. E, já agora, também deve ter prioridade intelectual. O que quero dizer com isto? Que é tempo de falarmos com franqueza sobre maternidade (e paternidade). Por norma, esta conversa vem sempre a reboque dos filhos: fala-se dos pais porque se fala dos filhos, que são envoltos num halo cor-de-rosa de lacinhos e rendinhas. Só que este halo esconde o lado sombrio da questão, um lado negro que fica soterrado, silenciado, recalcado. E, como todos os recalcamentos, esta sombra cria um mal-estar invisível que todavia tem um efeito muitíssimo visível: estamos a criar uma sociedade de filhos únicos, sem irmãos.
A maternidade não é aquele halo cor-de-rosa de lacinhos e rendinhas das revistas, blogues e murais de facebook. A maternidade (e a paternidade) não é uma utopia. Ou só é uma utopia mais tarde. Antes dessa paz da maturidade, há muito desassossego.
Ora, ser uma boa mãe (e um bom pai) não passa por negar a existência deste lado lunar; passa, isso sim, por assumi-lo e superá-lo com honestidade. O amor consciente vem daqui, desta catarse que nos muda depois do sofrimento. Problema? Hoje em dia, tenta-se banir o sofrimento e impor a felicidade a todo o custo. Há uma obsessão colectiva pela felicidade. Temos de ser felizes à força, temos de esconder ou medicar a dor, temos de ter vergonha da tristeza. Numa coluna semelhante a esta, David Brooks afirmou que a Amazon disponibilizou mil (1000) livros sobre felicidade num espaço de três meses. E, no entanto, existe um crescente mal-estar na sociedade. Um mal-estar que se nota nos Trumps, nas taxas de natalidade baixíssimas, na sociedade do filho único, na sociedade que não olha para o sofrimento da mãe porque quer logo instagramizar o bebé.
Sofrer faz parte do processo de crescimento da mãe (e do pai). Não é a felicidade que forma a mãe, é a dor. O amor é uma forja, não é uma camisa com lacinhos. Não, não se trata de masoquismo ou apologia da dor. Trata-se de reconhecer que o sofrimento é inerente à nossa condição e que, muitas vezes, surge lado a lado com a felicidade, deixando-nos em terreno ambíguo e trágico.
Ser mãe (e pai) dá felicidade, sem dúvida, mas também cria muito desassossego e infelicidade. Ao centrar tudo no lado infantil, lúdico e sorridente, a sociedade desiste de pensar a maternidade de forma adulta, não faz a necessária catarse do lado lunar. No fundo, falta-nos franqueza na hora do confronto com as nossas fraquezas. Falta-nos a coragem para entrar na casa da jovem mãe e perceber logo ali que ela está desorientada. Falta-nos coragem para, naquele momento, dar prioridade à dor da mãe e não à nossa alegria.