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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

O católico e a pobreza

29 set, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


"Ficar indignado com a exploração do ceifeiro alentejano ou do operário setubalense não implica uma cedência ao comunismo, implica apenas o respeito pelo evangelho".

Dom Manuel Martins levantava e continuará a levantar a questão da pobreza. Qual é o dever do católico perante a miséria? Como deve um católico actuar numa situação político-social que fomenta e despreza essa miséria?

A começar em Mário Soares, muitos colavam Dom Manuel Martins ao comunismo e à linguagem marxista. Há um fundo de verdade nesta associação. Em muitas situações históricas (contra Soares/FMI, contra Passos/troika), Dom Manuel Martins usou e abusou de uma retórica politizada que parecia partir do pressuposto de que os políticos dos ajustamentos (Soares, Passos) tinham gosto em provocar fome; era como se os políticos não tivessem escolhas trágicas para fazer, era como se os políticos não tivessem de actuar através do mal menor da cidade dos homens, era como se a perfeição da cidade de Deus fosse uma alquimia política possível. Convém, contudo, dar uma perspectiva histórica a estes excessos de Dom Manuel Martins.

Dom Manuel Martins foi eleito bispo de Setúbal num contexto de ruptura com o salazarismo (1975). E, neste cenário, o ponto central é o seguinte: durante o salazarismo, grande parte da elite católica traiu o seu próprio catolicismo, pois permitiu que o catolicismo se tornasse sinónimo de salazarismo, pois transformou a sua fé numa desculpa para negar a realidade, para se refugiar numa crença divorciada da imperfeição do mundo e do comprometimento cristão com a melhoria dessa imperfeição. Jesus não saiu da cidade, Jesus foi até à cidade. Jesus não foi eremita snobe, não tinha aquela repulsa aristocrático pelo mundo. Para citar Bénard da Costa, Alçada ou mesmo Dom António Ferreira Gomes, grande parte da elite católica usou o catolicismo enquanto negação da pobreza da esmagadora maioria dos portugueses, aliás, usou o catolicismo enquanto legitimação dessa pobreza, seguindo a voz do Salazar inicial. Não pagar salários ou pagar salários de miséria era aceitável e legítimo naquele status quo.

A este respeito, recordo sempre uma história contada pelo escritor José Rentes de Carvalho. Logo a seguir ao 25 de Abril, Rentes de Carvalho recebeu na sua casa de Amesterdão um casal de senhores doutores portugueses, que estava indignadíssimo: “as criadas agora exigem salário! Já não lhes basta ter casa e comida!” Recorde-se que não pagar salário a quem trabalha é na Bíblia um dos quatro pecados que bradam aos céus.

No contexto de ruptura histórica (anos 70 e 80) e naquele contexto geográfico (Setúbal operário e ateu), Dom Manuel Martins tinha mesmo de dar voz a quem tinha fome. E “ter fome” na Setúbal de 77 ou 84 não era metáfora. A denúncia desta realidade não podia ficar nas mãos exclusivas da esquerda radical, a igreja tinha de ser o outro porta-voz das bandeiras negras. Como dizia Dom Manuel Martins, a denúncia da pobreza é central no Evangelho, sobretudo na Carta de Tiago: “porventura não escolheu Deus os pobres segundo o mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam? Mas vós desonrais o pobre (...) olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifam os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo.”

Eis algo que muitos à direita e à esquerda ainda hoje não compreendem: o estado social começou nesta carta escrita 1800 anos antes de qualquer socialismo ou marxismo; ficar indignado com a exploração do ceifeiro alentejano ou do operário setubalense não implica uma cedência ao marxismo ou cunhalismo, implica apenas o respeito pelo evangelho.

Contudo, a meu ver, Dom Manuel Martins ultrapassava muitas vezes a jurisprudência do evangelho, recorrendo a uma linguagem em tudo idêntica à de Cunhal. O “empresário” e “capitalista” eram muitas vezes destratados ou caricaturados; era como se a riqueza fosse um pecado à partida e a pobreza uma virtude à partida, era como se a pureza ou a perversidade de uma pessoa não estivessem no seu interior moral, mas sim no seu exterior material. Dom Manuel Martins invocava ainda conceitos como “capitalismo selvagem”, garantindo que o “país está pendurado no grande poder económico, no capitalismo selvagem, sem o mínimo princípio de moral, que só explora, que só suga... nunca tivemos um governo que mandasse. Os poderes económicos dominaram sempre”. Lamento, mas isto não é evangelho, é uma leitura cunhalista da nossa realidade.

Por fim, recorria ao típico sonho cunhalista, “esse sonho do 25 de Abril falhou. Não passou do papel”, criticando inclusive a igreja portuguesa por ser conivente com este estado de coisas alegadamente falhado e alegadamente corrompido pelo tal “poder económico”. Na verdade, fiquei sempre com esta ideia: Dom Manuel Martins pensava que a III República podia ser comparada em perversidade e exploração ao Estado Novo; dentro desta narrativa, ele podia assim representar o papel de Dom António Ferreira Gomes da democracia. Sem pôr em causa a sua bondade, esta era uma visão desfasada e injusta da nossa democracia, da nossa vida colectiva, do trabalho da igreja e da nova geração de católicos, que se afastou da velha geração que deturpou o catolicismo no altar desse bezerro de ouro chamado Salazar. Para compreender isto, só temos de acompanhar a miríade de associações e projectos católicos que lutam todos os dias contra a pobreza por esse país fora, comprometendo-se com a realidade suja, recusando a fé enquanto negação snobe do mundo.

Comentários
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  • Vera
    30 set, 2017 Palmela 10:51
    Este texto tem dois Dons: um pertence a D. Manuel Martins, que foi uma pessoa digna desse Dom! o nosso Cardeal também tem esse Dom! mas há por aí outros dons e donas, de coisa nenhuma e julgam que são muito importantes! O segundo Dom do texto, é o Dom da literatura, do jornalista Henrique Raposo: este texto está escrito com classe, muita classe! fechou uma porta onde tinha uma placa de 'Ditadura' e logo de seguida, abriu outra porta onde figura a placa de 'Liberdade Lda.'Hoje não vou falar de Liberdade porque não é muito cómodo, fica para uma próxima...
  • Luis
    29 set, 2017 Bruxelas 11:13
    Em tempos turbulentos o homem chega sempre a um ou a outro extremo. Não me parece que se deixe reger por aquilo em que diz acreditar, mas sim pela sua própria natureza básica. Assim, certas pessoas quando fazem ou dizem algo que vai contra a Fé que dizem seguir ou acreditar, não estão a representar essa mesma fé, em si mesma, mas apenas o carácter de cada um...