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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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​Aulas e lições

19 set, 2017 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Lembrar D. António Francisco dos Santos, há dias repentinamente falecido, que representava com grande felicidade e enorme benefício para os que com ele puderam conviver.

Escreveu Balzac: “Há homens cuja profunda insignificância é um segredo para a maior parte das pessoas que os conhecem. Uma alta posição, um nascimento ilustre, atribuições importantes, um certo verniz de polidez, uma grande reserva no procedimento, os prestígios da fortuna, são para eles como guardas que impedem os críticos de penetrar na sua existência íntima. Essa gente parece-se com os reis cujo verdadeiro carácter, cujos costumes não podem ser bem conhecidos nem justamente apreciados, porque são vistos ou de muito longe ou de muito perto. Essas personagens de merecimento fictício interrogam em vez de falar, possuem a arte de dispor dos outros em cena, evitando tomar atitudes com habilidade feliz, fazem mover cada um segundo as suas paixões ou os seus interesses, e zombam de homens que lhe são realmente superiores; fazem deles fantoches e julgam-nos pequenos por os terem rebaixado à sua altura, até ás suas pessoas. Obtêm então o triunfo natural de um pensamento mesquinho, mas fixo sobre a mobilidade dos grandes pensamentos.”

Estas palavras de um exímio apreciador da natureza humana parecem-me adequadas para comentar a azeda contenda, mascarada de aula, com que Cavaco e Silva decidiu mimosear a Presidência de Marcelo. Não é necessário ser um génio da literatura para entrever como cada gesto do seu sucessor, cada abraço, cada olhar, cada palavra, são vividos lá para a rua do Possolo como amargas, indesejadas, repelentes lições. Há, entre ambos os homens, os políticos, os presidentes, uma distância humana e intelectual notável, tão notável quanto só um deles parece preocupado em examinar e chumbar o outro, nada mais conseguindo do que destacar-lhe a superioridade, já de si, evidente.

Mas como o curso da vida pode mais do que o nosso desejo, hoje gostaria de lembrar ainda um outro perfil de homem, que não é apenas superior mas é um justo. Como muitos leitores certamente já entreveram, refiro-me àquele pequeno grupo de pessoas que D. António Francisco dos Santos, há dias repentinamente falecido, representava com grande felicidade e enorme benefício para os que com ele puderam conviver. Trata-se de um perfil de rectidão, resiliência e empatia que vai muito para além da simplicidade, da humildade ou, até mesmo da bondade entendida como bonomia e consideração visto que se trata, realmente, de uma compreensão eticamente profunda das realidades pessoais e colectivas e de um desejo quase heroico e constante de enfrentar e superar as causas complexas da infelicidade e da indignidade humana, muitas vezes com custos elevados para a própria vida.

Como referiu um amigo comum, D. António Francisco soube viver a vida que entregou aos outros: a criança precocemente afastada do pai pela emigração, o rapazinho órfão, o filho dedicado e atento da sua mãe, o seminarista contagiado pelas propostas ousadas do Concílio, o enérgico jovem padre entre os portugueses de Paris, o sacerdote que baptizava os descendentes dos aristocratas expatriados pela revolução de Abril, o confidente de Mme. Mallah-Sarkozy, angustiada com os propósitos do jovem Nicolas, o estudioso de Feuerbach que aprendia alemão num duro trabalho fabril de férias, o investigador dos movimentos e condições migratórias, o professor paciente e sapiente, o director de escola criativo e inovador, o reitor exigente, generoso e amigo, a pessoa corajosa entregue à causa das pessoas, a mente rápida, geométrica e organizada, o espírito inquisitivo e curioso, o decisor informado e atento, a memória prodigiosa, o líder do diálogo e da equipa, o homem cheio de esperança e misericórdia, o presbítero da alegria e da consolação, o Bispo da Palavra e da Fé que em 2013 disse ao Papa recém eleito: “Eu também me chamo Francisco.” Obrigada por ter estado connosco.

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