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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Quem cassa algumas carteiras de pseudo-jornalistas?

04 ago, 2017 • Opinião de Graça Franco


Não pode valer tudo. A menos que queiramos cultivar um monstro: um povo de tal forma embrutecido que já não reage a nada, não se escandaliza com nada, não se indigna com nada e engole tudo da mais estúpida novela à mais violenta cena de crime. São povos assim que elegem os ditadores patetas que por aí começam a proliferar.

Talvez não se conseguisse ver nada a não ser a morte. Talvez a morte seja grande demais para se perceber, em 90 segundos, que por detrás dela estava um homem e uma criança vivas e despreocupadas no areal. Talvez o mar de gente e o mar azul não se distinguissem aos olhos de quem caía do céu, e já sentia o aperto do seu abraço. Talvez o piloto tivesse feito o possível para se afastar da praia e não o tenha conseguido com a morte a zumbir-lhes aos ouvidos num terramoto que apenas dura dez segundos. S. João da Caparica não é a minha praia. Julgar também não.

Não sei. Não estava lá. E, depois de ler o relato de duas testemunhas credíveis: a blogger do "A mãe já vai", que confessa que entrou em pânico, e o jornalista Enrique Pinto Coelho que a SIC serenamente entrevistou, continuo sem saber. Os vídeos que as TVs passaram à exaustão não mostram nada, não dizem nada, não provam nada. São pura tragédia. Contam-nos apenas a estória do bom gigante: o homem, um jogador de basquetebol, que soube descobrir o seu lugar na cena da desgraça para evitar outra maior e perante o qual a populaça, agindo em rebanho, sedenta de mais sangue, se acobardou.

Mas uma coisa sei. Sei de fonte segura que ninguém que se diga jornalista pode entrevistar um pai a quem a filha de oito anos acaba de morrer atropelada, escasso tempo antes, por uma avioneta que cai no areal onde brincava.

Esse ou essa (não identificarei nem o nome nem o meio para não publicitar) - e confio mais uma vez no relato de Enrique - não pode manter a carteira profissional sem que lhe dêem a ler o código deontológico e o/a obriguem a copiá-lo vinte, trinta, cinquenta vezes. Quantas forem necessárias até que perceba esta regra básica: ninguém pode espetar um microfone à frente de um pai perturbado por uma dor tão profunda. Alguém a quem a emoção e o choque tolde de tal forma o juízo que, por mais estruturado que ele pareça, não pode em caso algum ser pedido e muito menos ainda reproduzível. É como entrevistar o cadáver. É como dar voz à própria morte. E se o jornalista é tão jovem que não consegue perceber o que é perder um filho, que haja uma chefia co-responsável.

Para que serve a ERC? E a comissão da Carteira? E o Sindicato de Jornalistas, se não servem para esta coisa básica que é mostrar que na guerra de audiências não vale tudo? Não pode valer tudo. A menos que queiramos cultivar um monstro: um povo de tal forma embrutecido que já não reage a nada, não se escandaliza com nada, não se indigna com nada e engole tudo da mais estúpida novela à mais violenta cena de crime. São povos assim que elegem os ditadores patetas que por aí começam a proliferar.

Um povo que Enrique Pinto Coelho descreve, no seu sereno texto no Observador, pela chocante "indiferença com que muitos banhistas encararam a tragédia: namorados aos beijos a cem metros do local do acidente, pessoas a beber 'cocktails' nos bares com vista para o Cessna".

Esse povo que eu vi, não sei se no mesmo dia se na véspera, numas outras imagens da TV, em que o pessoal da emergência médica retirava das águas o cadáver de um jovem de 16 anos que tinha saltado de uma prancha e desaparecido, numa outra terra algures neste país. Velhos, jovens e crianças encavalitados na amurada, sem deixar de lamber os gelados que tinham entre mãos, sem o mais leve trejeito de respeito e dor pela vida perdida do adolescente morto.

A morte que seguia de maca, embalada de branco, passava perante a mesma indiferença que se viu naquele areal da praia de S. João quando a tarde de praia não se tornou insuportável para os restantes banhistas. Deixando a triste impressão de que a morte caída do céu se tornara apenas numa nova estória para apimentar o jantar. Talvez seja por isso que as vidas dos outros se tenham tornado pequenas demais para poderem brilhar como estrelas num mar de gente na zona de rebentação do mar da morte.

Esta sexta-feira, em Diavolezza, nos Alpes Suiços, outra avioneta caiu sobre um campo de férias frequentado por cerca de duas centenas de adolescentes. O piloto/instrutor e duas crianças de 14 anos morreram, enquanto outra de 17 ficou ferida em estado grave. A experiência da aviação, segundo o jornal Suiço " 20 minuten", fazia parte das actividades do campo. Espero, sinceramente, que as férias de todos se tenham interrompido o tempo suficiente para que possam viver o luto pelos seus companheiros. O mundo andará muito mal se as férias (imagino que já pagas e suficientemente caras) simplesmente continuarem.

Comentários
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  • natalia santana
    08 ago, 2017 15:17
    A pobreza de alguns meios de comunicação social (todos conhecemos quais), é viver do "sangue" e da dor dos outros para marcarem audiencias, explorando a emoção sem respeito, grande caixa falar na hora com pai/mãe de quem perde um filho sem saber como...Outra angustia existencial é saber que os ditos canais e jornais são os de maior audiencia, são o reflexo da educação que não tivemos enquanto povo, que alimentam os chamados "jornalistas" que devoram e espremem as emoções humanas. Constato que há jornalistas com nome e trabalho feito, que me deixam de boca aberta ao dar a cara neste tipo de meios de comunicação. Quantos aos assistentes da tragédia alheia, quase com prazer, revela a falta de respeito, solidariedade, individualismo dos homens, que enquanto fôr com os outros está tudo bem! Pobres de espìrito, não sabem o que é amor pelo próximo, aconchegar o outro e protegê-lo dos "abutres". Se isto dá audiencias e dinheiro, dê-se o que o povo gosta. Espera- se que uma outra geração mais qualificada, possa gerar pessoas mais independentes, inteligentes e lucidas. Portugal merece!
  • No país da diversão
    07 ago, 2017 Lisboa 17:08
    A função dos sindicatos é defender os interesses da classe, o jornalismo está mau porque os reguladores não atuam. E como podem ver aqui, o povo tem muito culpa. http://24.sapo.pt/opiniao/artigos/a-queda-da-avioneta-e-a-entrevista-ao-pai-da-crianca "Os jornais são o reflexo da sociedade e, por isso, não é de estranhar os relatos de que na praia havia gente a tirar fotos e a fazer vídeos dos cadáveres despedaçados, só porque a moda da foto dos pés na praia já está muito batida e o que dá likes agora é foto do pé na mioleira de criança. É o sinal dos tempos que nos faz crer que caminhamos para um cenário Black Mirror.". Há muito "lixo" na comunicação social porque é desse "lixo" que o povo gosta.
  • Manuel Figueiredo
    07 ago, 2017 Póvoa de Varzim 10:27
    Muito bem. Aguardemos a reacção do Sindicato dos jornalistas e da ERC, que já tarda. Entretanto, muitos outros (responsáveis) jornalistas parece não terem opinião...
  • Miguel Botelho
    05 ago, 2017 Lisboa 18:37
    Opinião social-democrata sobre o tema. Graça Franco foi sempre e será uma pseudo-jornalista parcial.
  • Esousa
    05 ago, 2017 Coimbra 17:01
    Porventura a senhora viu a jornalista da Tvi a procurar o pai da vítima mortal? Não, foi o pai que procurou a jornalista, que ficou apreensiva, tendo em conta quem era... Por isso olhe-se ao espelho e aproveite para reler o código deontológico... Ou reveja o direto.
  • MASQUEGRACINHA
    05 ago, 2017 TERRADOMEIO 15:53
    Creio que a (justa) indignação toldou um pouco a habitual lucidez da articulista. Nos comportamentos individuais, há que levar em conta que demoram o seu tempo a adaptar-se à observação imediata de eventos inesperados e chocantes. Não havendo nada de útil que se possa fazer, tende-se a prosseguir, de forma quase automática, o que se estava a fazer. Ou então dar largas ao impulso voyeurista, aproximando-se o mais possível da poça de sangue. É exemplar o caso dos acidentes rodoviários: há quem por eles passe sem sequer olhar - será isso indiferença? E há quem abrande ou até pare, provocando acidentes secundários, para fazer a contagem dos mortos in loco - será isso compaixão? Perante a tragédia súbita, move-nos inconscientemente o medo de que tivesse acontecido connosco, e a ânsia de nos provarmos que continuamos vivinhos, vendo, comendo, bebendo, beijando, pois. Somos pobres moscas a quem, de vez em quando, um mata-moscas gigante, vindo do nada e sem razão aparente, esmaga. Desatinamos quando - por cega sorte - escapamos. Comentar o caso entre dentadas na sandes, com redobrado apetite, e antever o momento de glória quando o contarmos ("eu estava lá! um minuto antes tinha estado naquele sítio!), é mais digno de compaixão do que desprezo. Nenhuma dessas pessoas esperará dos outros diferente comportamento, nem vê sequer mal nenhum nisso - não é propriamente um linchamento, pois não? E o media inominável incentiva e recompensa em direto esta imaturidade anímica que o sustenta...
  • No país da diversão
    05 ago, 2017 Lisboa 14:23
    Tenho de acrescentar que o código deontológico dos jornalistas, tal como outros código deontológicos, existe para ser violado. E em nome da transparência e da civilização a comunicação deve ter na sua página na Internet uma zona onde diz claramente quais os seus critérios de publicação de notícias, quais as prioridades, etc.
  • No país da diversão
    05 ago, 2017 Lisboa 12:00
    Concordo no essencial com o que diz, o problema é quando a exceção confirma a regra. Temos um mau jornalismo, o jornalismo da diversão, da estupidez e da censura. E em geral os reguladores não querem saber, existem para iludir as pessoas. A publicação de factos pela imprensa baseia-se na sua estupidez para divertir o povo carente ou na sua insignificância, e não na sua importância como deve ser. Concordo com o que diz em relação ao povo, resta acrescentar a estupidez e que um dos grandes culpados do povo ser assim é a própria comunicação social. Este povo só se une onde haja diversão e estupidez, parecem crianças, e apenas sabem discutir futebol e dinheiro. O grande culpado é o povo que já não reage a nada, não se escandaliza com nada, não se indigna com nada, só quer diversão, estupidez, e dinheiro.
  • joaquim manuel dias
    04 ago, 2017 são bras de alportel 21:48
    Nao podia estar mais de acordo ja em Pedrogão foi a mesma cena miseria digo eu!!!!
  • Maria gomes
    04 ago, 2017 Lisboa 20:22
    Cassa? Ao que chegou o jornalismo!