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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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E o Bloco lá marcou mais um golo à Ronaldo

01 ago, 2017 • Opinião de Graça Franco


No final da legislatura, o Bloco exibirá ufano as grandes conquistas “civilizacionais“ inscritas no seu programa, enquanto o PS moderado se ficará por conquistar um atestado de bom comportamento pós-modernista, imposto pelo “parceiro” informal, indo para além da troika na agenda liberal, para raiva da direita desapossada do poder.

A lei das barrigas de aluguer entrou hoje em vigor. Na habitual "Opinião Pública" da SIC, sobre o tema, um dos participantes afirmou: “Ninguém pergunta às cadelas quando lhes vão tirar os filhos se elas querem e só não o fazem às leoas com medo de ficarem por lá alvo de alguma dentadita…” (cito de memória).

Assim terminou a sua defesa da justeza da lei. "Vox populi" a acabar o debate sobre os eventuais direitos da mãe gestante. A comparação ignorante e infeliz tem o mérito de chamar a atenção para uma realidade: a mãe obrigada a ceder “por contrato” o filho gerado, na hora do parto, corta o cordão umbilical com o filho não apenas física, mas contratualmente.

Com uma agravante: fá-lo, supostamente, por um acto de amor para com a mãe contratante, sendo-lhe particularmente próxima. E com quem, muito provavelmente, continuará a conviver de perto.

A mesma sociedade que garante que, numa gestação desejada e “normal”, aqueles nove meses serão decisivos para o futuro e bem-estar do bebé - devendo ser rodeados de todos os cuidados (não vá o pobre traumatizar-se in utero e já não conseguir tirar o doutoramento), devendo a mãe seguir uma alimentação saudável, passando pela sessão de festas à barriguinha impostas ao parceiro da gestante, da música a ouvir a três, dos sonhos a cultivar pela mãe, do stress a evitar e da paz que rodeia todo aquele tempo de preparação para a vida futura e que não raro passam por repintar a casa com cores suaves e delicodoces -, faz com que, nesta lei, todas estas teorias se apaguem por milagre. Já não interessa nada disso, nem isso condicionará a vida futura do bebé, como se o ventre de aluguer se transformasse agora numa mera incubadora.

Imaginemos o caso da mãe gestante de “aluguer” da filha (sem útero) e que, por isso, recebe o óvulo fecundado da filha pelo esperma do genro. E que, na hora do parto, entrega à filha o neto depois dos nove meses de gravidez vivida com a mesma intensidade que colocou na gestação da própria filha ou de um qualquer dos seus irmãos, mais velhos ou mais novos. Não me digam que isso não trará à mãe gestante a maior das confusões. Mas talvez a irmã mãe solteira possa, solidariamente, oferecer-se para ter como única experiência de maternidade a gestação do sobrinho, filho do cunhado e da irmã. Não me convencem que isto se resolve a seguir apenas com o apoio psicológico adequado à mãe incubadora.

Diz o dr. juiz Eurico Reis (que tanto prezo em múltiplas matérias) que esta minha posição contra a lei das barrigas de aluguer, expressa também por outros participantes, sofre de uma enorme “hipocrisia” e “crueldade” e visa impedir às mulheres sem útero que recebam de Deus “a bênção de um filho”. Curiosa, sim, é a hipocrisia de quem assumindo que não crê, pretende manipular com os argumentos de quem se confessa crente as crenças que não professa e, pelos vistos, nem conhece.

Claro que para um católico um filho é sempre uma bênção, mas nem todos os católicos terão os filhos que desejam nem esse facto é visto como um direito que lhes assiste. Nem como facto de por isso serem menos amados pelo Deus em que acreditam. Por isso, não se sentirão menos abençoados. Esse tipo de argumento ficou-se pelo Antigo Testamento e Cristo veio à terra não para mudar a lei, mas para lhe revelar o verdadeiro sentido.

Ter muitos filhos não é um atestado de bom comportamento religioso nem de uma preferência de Deus. E não ter filhos não é sinal de abandono divino ou de menos amor por parte do Criador. Crueldade é apresentar as coisas dessa forma, fazendo crer que a amputação da experiência da maternidade é sinal de privação de uma experiência de realização a que todos, sem excepção, têm uma espécie de direito de acesso incondicional. Os filhos também são fruto da nossa liberdade e o facto de não os ter pode resultar de uma miríade de circunstâncias.

Diz também Eurico Reis que, porque a adopção só é muitas vezes possível quando as crianças já não são bebés, o debate não pode fazer-se em paralelo. E porque crescem os bebés institucionalizados? Não será porque é urgente rever a lei da adopção? Ou o direito a ter um filho passa por ter um filho recém-nascido “alto loiro e de olhos azuis”, ou encomendado “à Ronaldo”, tornando o ADN uma espécie de deus da felicidade? Não podem os afectos aqui sobrepor-se à genética? Ou até à idade? Ou, simplesmente, se recusa hipocritamente essa saída?

Por contraponto, traz o juiz à colação a questão da violência doméstica em muitas famílias ditas “normais”. Como se aquelas que beneficiarem desta técnica tivessem atestado garantido de bom comportamento conjugal e educacional. Talvez aqui é que seja melhor não se confundirem os debates que, esses sim, não têm nada a ver com a questão em causa, uma vez que a praga da violência é transversal a toda a sociedade e não poupa, sequer, os que tem filhos muito desejados ou adoptados (onde o estudo do perfil dos adoptantes deveria impedir que a violência familiar viesse a acontecer!).

No final da legislatura, o Bloco exibirá ufano as grandes conquistas “civilizacionais“ inscritas no seu programa, enquanto o PS moderado se ficará por conquistar um atestado de bom comportamento pós-modernista, imposto pelo “parceiro” informal, indo para além da troika na agenda liberal, para raiva da direita desapossada do poder. Se assim for, será pouco na matéria reformista e muito no retrocesso civilizacional que as leis impostas - não discutidas, e apresentadas como “indiscutíveis” - vão impondo servindo-se da suave mordaça do politicamente correcto.

E é pena porque a sensibilidade social que sempre caracterizou o Partido Socialista tinha mais para oferecer. Muito mais.

Comentários
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  • Fernando
    04 ago, 2017 Funchal 22:18
    Ó Graça! Francamente...
  • Carlos Gonçalves
    03 ago, 2017 Almada 22:50
    Na RR impera sim, a direita , o PSD no caso desta senhora . Eu, ouvinte e cidadão, já não tenho liberdade de expressão, a Igreja ao longo dos tempos sempre foi assim . Mantem-nos leigos,idiotas,analfabetos e estupidos. Assim, prosperamos . Na idade Media !!
  • Carlos Gonçalves
    03 ago, 2017 Almada 22:44
    Continua a CENSURA neste espaço onde eu, cidadão PORTUGUÊS num País republicano,estado democrata, e a liberdade de expressão impera após o 25 de Abril , a Igreja " acha " e censura a minha LIVRE liberdade de expressão sobre este tema/tópico . Triste muito triste.
  • Para refletir...
    03 ago, 2017 Almada 11:13
    De acordo com o principio da separação de poderes, à Assembleia da República compete debater e aprovar as leis e à justiça aplicar as leis. Se o poder político não pode comentar o que se passa na justiça (o que eu acho assustador pois contribuía para a transparência), também a justiça não pode comentar as leis aprovadas pelo poder político. Mas os outros andam distraídos e só eu é que falo nisto. Sou contra o comercio da vida humana e o tratamento das pessoas como números. E há coisas bem piores que a violência doméstica, mas nisso não interessa falar!
  • Jorge Pereira
    02 ago, 2017 Almada 21:43
    Querida tia, O seu problema é o Bloco ou a questão em si? Pense pela sua cabeça, se a tem, e deixe-se de politiquices!
  • MASQUEGRACINHA
    02 ago, 2017 TERRADOMEIO 19:55
    Bem regressada seja! Já supunha que não voltaria a ter o prazer de a ler. Mesmo para simpatizantes dos "avanços civilizacionais" por princípio (como é o meu caso), é um artigo muito bom, com uma belíssima argumentação. Ah, as incoerências da felicidade intra-uterina! Persistir, mesmo sofrendo, para ter um filho, parece-me admirável. Mas observando o verdadeiro ordálio a que muitas pessoas se sujeitam na sua ânsia/necessidade de ter um filho, muitas vezes me questionei se gente tão obsessiva teria equilíbrio psíquico para a parentalidade, para aceitar os desencantos e respeitar a individualidade de um filho. E lembro-me de Carlos II, libertino pai de filhos extra-conjugais, que recusou divorciar-se de Catarina, a virtuosa católica que nunca conseguiu ter filhos. Apesar das razões de linhagem, das diferenças de religião, e da infidelidade recorrente, Carlos terá dito: "Se Deus quisesse que me sucedesse um filho, ter-mo-ia dado no matrimónio. Submeto-me ao juízo de Deus". Talvez, na verdade, achasse a prole bastarda incapaz para reinar. Ou talvez seja uma parábola sobre filhos e juízo de Deus. No presente, muito mais aliviado de pressões sociais, a não aceitação do insuperável tende a reduzir-se ou a narcisismo ou a orgulho, ambos patológicos - sem pegada de ADN, a vida tem pouco valor para tão ilustres gâmetas ambulantes. Mas qual lei, qual mãe, quais dentadas e pieguices, se já está aí o útero mecânico? Acabou a chantagem do útero! Seremos todos livres, ronaldos e ronaldas!
  • Makiavel
    02 ago, 2017 Cascais 17:17
    Só um esclarecimento: a lei agora aprovada existe apenas em Portugal ou as barrigas de aluguer já estão enquadradas legalmente noutros países?
  • Cristóvão N.
    02 ago, 2017 Coimbra 12:40
    "Se assim for, será pouco na matéria reformista e muito no retrocesso civilizacional que as leis impostas - não discutidas, e apresentadas como “indiscutíveis” - vão impondo servindo-se da suave mordaça do politicamente correcto." Touché. Excelente artigo por parte de Graça Franco. Já é tempo de expor a hipocrisia e dualidade de critérios desta gente. Um pouco por todo o mundo está a crescer esta reacção lógica a esta agenda ideológica extremista, imposta por "meia dúzia" e passada por consensual, especialmente com a ajuda dos meios de comunicação social.
  • José Saraiva
    02 ago, 2017 Viseu 10:04
    o maior feito que o BLOCO conseguirá nesta legislatura será apresentar um "homem prenhe" de gêmeos....Salazar oferecia no seu tempo um GRANDE PRÊMIO á qualquer homem que "parisse"...
  • Marco Visan
    01 ago, 2017 Lisboa 22:16
    Graça Franco aqui deixou a sua opinião social-democrata, simpatizante com as ideias conservadoras de Pedro Passos Coelho. RIP, Graça Franco, pois essas ideias já são muito velhas. Será melhor ressuscitar, Graça Franco, no meio das cinzas do seu defunto partido, porque com Pedro Passos Coelho não vai estar só partido, mas despedaçado.