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O último habitante. Reportagem de Sandra Afonso

Reportagem

O último habitante

18 jul, 2017 • Sandra Afonso


Divide os dias pela terra, as caminhadas e os gatos. Agora querem entregar-lhe a comida por drone. Acha muito só por um homem.

Uma dezena de casas vazias e caminhos desertos não chegam para levar Joaquim a sair de Podentinhos.

Nunca foram muitos, na verdade. Joaquim conta que chegaram a ser seis vizinhos. “Desses seis, uma foi ali para Vale de Arinto e os outros morreram, foram para debaixo da terra." Ficou Joaquim para fechar a última porta, ele que nem ali nasceu, casou com uma filha da terra e foi o fruto dessa terra que acabou por ditar o fim do casamento deles. Mas já lá vamos.

Chegar a Penela, perto de Coimbra, é fácil, basta seguir as indicações. Já os três quilómetros seguintes até Podentinhos são um labirinto para quem não conhece. Não existem placas e a estrada estreita de terra batida e esburacada tem ramificações. Quando finalmente encontramos Podentinhos, vemos logo Joaquim. O motor do carro anuncia-nos e ele já está à espreita, encostado à ombreira da porta.

Combater a solidão

Diz que não se sente só. “Olhe, à hora do meio-dia trazem cá sempre o 'comerzito'. E aqui os vizinhos vejo-os sempre passar, aí, cinco, seis vezes durante o dia. E depois também gostam de dizer adeus!”

Aos 80 anos mantém os dias disciplinados com uma rotina que aplica de forma religiosa. Levanta-se cedo, pelas seis da manhã, para tratar das terras. À hora do almoço já está em casa, à espera das senhoras da Santa Casa, que vêm entregar a marmita todos os dias. Duas vezes por semana faz três quilómetros a pé para ir a Penela, à missa, ao café e às compras, no regresso vem de táxi.

Dos amigos fala com cautela, diz que “não faltam”, mas “têm que ser controlados.”

“Ainda aqui há tempos estava aqui, num dia de chuva, apareceram aqui alguns seis ou sete. Nesse dia tinha vinho, estava ok ainda. Beberam, beberam, beberam, beberam. Parte deles foram-se embora no fim, já estavam meios bêbedos, deixaram-me uma torneira acolá em baixo mal fechada, num tanque. Eu no outro dia chego lá, começo a chapinhar: então, mas que raio de conversa é esta, vinho no chão! Aqueles filhos de uma p***, a maior parte deles não têm um copo para darem na casa deles e vêm para aqui beber, para a outra vez esperam lá fora e é se quiserem!”

O drone que entrega comida

Dizem que a marmita vai passar a chegar do céu: vai ser entregue por um drone.

Agora chega pelas mãos das senhoras da Santa Casa, por volta do meio-dia. A entrega é rápida, porque a volta ainda tem uns quilómetros, mas quem vem ao volante sabe que os minutos de conversa que dispensar podem ser os únicos do dia para o Joaquim.

Estas visitas diárias podem ter os dias contados. O Joaquim faz parte de um programa piloto de entrega de comida através de drones. No entanto, o projecto já foi apresentado no final do ano passado e ainda não tem data para arrancar. A empresa responsável, a Connect Robotics, continua em testes.

Joaquim já viu o aparelho e, com oito décadas de vida, não se deixa impressionar: “É o que eu digo, é a pessoa ser quatro ou seis, já digo que pagaria a pena… Agora só por causa de um, acho muita fruta para pouca gente!” Também não está preocupado com atrasos, porque “se houverem de atrasar, atrasam entre todos!

As visitas da Santa Casa vão manter-se, com ou sem drone, pelo menos uma vez por semana, para lhe tratar da cama e da roupa.

O divórcio

A cabeça já se baralha com as contas, mas garante que se lembra muito bem quando ficou sozinho, depois de desfilar alguns números lá diz que fez dez anos. “Levou muito tempo”, recorda, “havia um tio meu acolá em baixo ao fundo, havia os meus sogros. Havia por aí ainda uma gentita espalhada. Estou há dez anos sozinho.”

Quis o destino que a mesma vinha, que lhe encheu a casa de riqueza, acabasse por lhe levar a mulher. “A 'bubadeira', num homem é ruim, mas numa mulher é pior! Porque uma mulher, essa que eu cá tinha, uma vez cheguei eu, andava ali muita bêbeda. Uma pessoa bêbeda, estar a falar para eles é a mesma coisa que estar aí a dizer não a uma parede. Não liguei. Naquilo, diz ela assim: tenho aqui duas porcas – que é dois animais suínos – eu trato duma ele que trate da outra, se quiser. Está bem, está! Catorze leitões mortos, que eu tive de andar a abrir o buraco para enterrar.”

Joaquim não tem dúvidas, o vinho ditou o fim do casamento: “Eu na altura tinha muito vinho. Ela apanhou-se na fartura! Quando me casei comprei terras à bruta! Ela ainda agora vendeu 400 e tal contos de terras acolá em cima.”

A terra

Não tiveram filhos, dividiram terras e bens.

À medida que fala, Joaquim vai enterrando o cajado no chão e os olhos brilham cada vez que a gravilha vai dando lugar a terra húmida, aquele é o tesouro dele. “Enquanto puder trabalhar e assim e tal, não saio daqui”, diz. Quando sair será para ir para a Santa Casa, tem sete irmãos, mas não conta ocupar a casa de ninguém.

A reforma, da agricultura, mal dá para as despesas. Segundo o Joaquim, “dá, porque não posso alambazar muito. São 200 e não sei quê, não chega a 300. O que lá está agora diz que agente ia levar mais um, que aquilo ia andar para diante mais um bocadito, vamos a ver. Só preciso de tanto! Levando tanto, toca a andar!”

Em último recurso, há sempre a possibilidade de vender terras. Mas até agora só teve que fazê-lo uma vez: “Ainda aqui há tempos vendi esta para o meu irmão. Mas disse logo para ele: olha que eu quero 500 euros, por menos não vendo, e não quero o dinheiro em casa. Tinha alguns 10 dias de lavoura de vinha, tinha muita vinha eu. Vendi ainda só uma. O meu irmão queria-me comprar outra mas eu disse não, vamos lá ganhando calma!”

Os franceses

Por estes dias há mais pés a pisarem Podentinhos. Joaquim chama-lhes “os franceses”, mas na verdade são de diferentes nacionalidades. São estrangeiros, falam todos línguas estranhas, que ele não percebe, e são os únicos que ainda vão passando à porta dele, mais amiúde.

“Às vezes passam aqui os franceses, lá falam qualquer coisita, como podem, querem ou sabem. E os vizinhos. Há um vizinho, até era meu cunhado, morreu no outro dia, também tinha aqui um terreno, mas esse mora na Carvalheira da Boiça.”

Os franceses estão acampados ou em caravanas, num terreno mais acima, herdado por um familiar de um antigo vizinho do Joaquim. Quando o Inverno aperta partem, quando o Verão melhora, fazem o mesmo. Nunca vê as mesmas caras muito tempo. “É assim… esses aqui, os franceses, se é que eles, aí aturassem… E se é que eles quisessem conviver!... Esses franceses têm aí terreno, mas eu nunca vi que eles aí botassem couve ou um nabo, batata, nada disso. Eles é só estrada, estrada, estrada…”

Os gatos

Seguem-lhe os passos, são bons ouvintes e gostam da comida lá de casa, mas nenhum tem nome. “É o gato, o gato, o gato… Quando os quero chamar, chamo chainho, chainho… E eles vêm logo! Oh, oh… Vêm a correr e até se atropelam uns aos outros para virem ter comigo.”

São os gatos do Joaquim. Enquanto falamos aproximam-se de nós, roliços e cuidados, brancos e amarelos. Contamos seis. Um dos “franceses” chegou a pedir-lhe dois. "Ele foi lá buscá-los, mas aqui apareceu-lhes mais o comer ao jeito deles e eles estavam lá e estavam aqui logo!”, diz entre risos.

Não se pense que não terem nome é sinal de menos afeição, Joaquim sabe distinguir cada um e admite que são eles que o ouvem quando não resta mais ninguém: “Digo o que é que eu quero. Olha que vocês assim, vocês assado, desta maneira e daquela. Boto-lhe comer. Pronto!”

Em casa, quando não está a trabalhar, é a rádio que lhe faz companhia. Também vê televisão mas, confessa, agora até está avariada.

“Eu o rádio, sabe eu a partir das 6 horas estou sempre OK. Na agricultura, se não for de manhã cedo, depois vem o calor, não se aguenta. O rádio é logo de manhã. A Renascença é o meu rádio preferido. O rádio gosto muito. A televisão já fica mais esquecida.”

Comentários
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  • Vado Ribas
    20 jul, 2017 Genève 11:20
    Triste de ver que as terras do interior vão-se finando, mas feliz de ouvir (ler) ainda as raízes de um povo que teima em querer existir. Parabéns à sra. Jornalista por esta bela reportagem.
  • Maria Nunes
    19 jul, 2017 Coruche 21:58
    Boa reportagem gostei de ler.
  • Joaquim Formigo
    19 jul, 2017 Coruche 05:40
    É esta a nossa terra ...Os nossos costumes e a nossa gente ...é português sempre trabalhou e continua e a reforma não chega aos 300€
  • leonor almeida
    18 jul, 2017 lisboa 23:58
    Riqueza cultural fantástica a nossa.fiquei enternecida.mais reportagens destas.portugal profundo.fabuloso