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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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NEM ATEU, NEM FARISEU

O inferno da gorda

14 jul, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


"A Gorda" (2016), romance de Isabela Figueiredo, descreve um inferno pessoal e intransmissível. Às tantas, a personagem principal, Maria Luísa, professora da margem sul, retornada, até diz que sabe viver e escrever a partir do inferno.

Há várias imagens ou ideias do inferno. O tártaro grego, poço sem fundo onde se cai perpetuamente, uma queda sem fim como no genérico de "Mad Men". O poço com água onde se morre por afogamento, replicando a morte dos gigantes do tempo de Noé. O lago de fogo clássico que queima os impuros naquele betume sulfúrico e mole que faz lembrar o alcatrão derretido de Pedrógão. O vazio, o escuro, a ideia de "trevas exteriores". O centro gelado e inóspito do inferno de Dante. A Gehena, imagem arquétipa da lixeira pós-apocalíptica onde se queimam cadáveres humanos e esterco. Sem por de lado o mistério e a beleza negra destas metáforas que oscilam entre a água que congela ou afoga e o fogo que queima, convém ter em mente uma ideia de inferno mais simples e mais real: a divisão. Estar no inferno é estar num estado permanente de divisão entre dois sentimentos, entre duas lealdades; se um ou vários destes dilemas se eternizam na nossa vida, caímos na essência do inferno: não ter paz, o desassossego. A literatura é sempre uma passagem por este inferno. Um bom livro até poderá chegar à redenção, com certeza, mas tem de passar sempre pelo inferno e pela franqueza brutal da confissão.

"A Gorda" (2016), romance de Isabela Figueiredo, descreve um inferno pessoal e intransmissível. Às tantas, a personagem principal, Maria Luísa, professora da margem sul, retornada, até diz que sabe viver e escrever a partir do inferno. Nota-se. Maria Luísa ama a mãe, mas não deixa de sentir alivio quando ela morre. "A morte da mamã foi um alivio", porque cuidar de uma idosa acamada é um fardo, cria um desgaste difícil de conter. Porque é que eu não posso estar a gozar a vida como as outras pessoas? Porque é que tenho de estar aqui a lavar o corpo inerte e desamparado da minha mãe? Não há amor sem sacrifício, caso contrario o amor seria um mero "afecto" passageiro, um abracinho. Este sacrifício porém atira-nos para a divisão. Ou seja, é difícil conceber amor sem três ou quatro paragens no apeadeiro do inferno.

A divisão que um filho sente perante a mãe acamada é parecida com a divisão que um pai sente perante o cansaço da paternidade. Como já escrevi algures, o casamento, em geral, e a paternidade, em particular, implicam várias passagens pelo inferno antes de chegarmos às metas paradisíacas que tudo redimem e seguram. O casamento e a paternidade não dão felicidade, ou melhor, não fornecem o conceito de "felicidade" que hoje em dia é pedido pelas pessoas. Maria Luísa não tem filhos mas pressente este dilema maternal/paternal em diversos sonhos. No entanto, tem coragem para engravidar. Só que o seu corpo atira-a de novo para o inferno: o seu útero lança uma rebelião biológica, fomenta a divisão, não aceita o desejo da mente, e provoca vários abortos espontâneos que Figueiredo descreve com mão segura. Descrever a dor de um aborto é mais difícil do que descrever o prazer do sexo, mas a escrita de Figueiredo tem a secura necessária para a tarefa. É uma escrita gelada. E talvez seja este o grande mérito de Isabela Figueiredo: a sua escrita é fria e cortante; as suas frases não estão ali para enfeitar ou para oferecer onanismos formais, estão ali para nos cortar como lâminas de barbear pré suicidas.

O inferno de Maria Luísa prossegue no amor, na ideia de que poderia ter vivido uma vida diferente com a grande paixão da sua vida, David. A certa altura, Maria Luísa e David (namorados de liceu/faculdade) separam-se. Ela cai num poço sem fundo, o seu tártaro pessoalíssimo; quando regressa à tona, Maria Luísa reencontra David já casado e com filhos. David e Maria Luísa formavam uma única linha recta; depois do corte, cada um seguiu na sua linha, mas trajectória de David permaneceu demasiado próxima. Maria Luísa e David dão aulas na mesma escola. É esta proximidade que cria a maior divisão em Maria Luísa, porque não há um corte definitivo; ela continua a pensar que as duas linhas podem confluir de novo, como dois braços do rio que se reencontram quilómetros depois da aparente separação. Para Maria Luísa, voltar a viver com David é um futuro possível, ao alcance do braço. No fundo, este evidente alter ego de Isabela Figueiredo faz lembrar Clint Eastwood em "Pontes de Madison County": está à espera que Meryl Streep abra a porta do carro. Coisa que não acontece. Não há maior inferno do que este: a certeza de que poderíamos ter vivido um futuro diferente. Não se trata de uma utopia longínqua e quimérica, mas sim de um futuro verosímil. É a bola a bater na barra, é aquele segundo em que não se teve coragem para abrir uma porta, são aquelas décadas de agonia que se seguem a esse segundo de indecisão. Isto é o inferno. É aquela sensação de queda perpétua, como no tártaro. "A Gorda" sabe e explica.

Comentários
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  • mara
    15 jul, 2017 Portugal 15:56
    Caro Dr. Como sempre o seu texto é extraordinário, gostei imenso...
  • Alex
    15 jul, 2017 Juiz de Fora 01:36
    Caro Henrique, é a primeira vez que gostei de um texto seu (e já li muitos). Parabéns!