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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Perguntar, responder e governar

12 jul, 2017 • Opinião de José Miguel Sardica


Na hora do aperto (e com a conivência do Presidente Marcelo) o Primeiro-Ministro adota a técnica de perguntar, de perguntar muito, muitas coisas, a muita gente, jurando que nada ficará por se saber – sobre os fogos, o SIRESP, os militares e o mais que venha. Perguntar é fazer prova de existência

"Accountability" é uma palavra inglesa que podemos traduzir por "responsabilidade". Mas trata-se de uma tradução literal, que não expressa, em português, o sentido mais nobre, ético, de transparência, rigor e autoexigência que o termo assume nas democracias britânica ou norte-americana. A verdadeira "responsabilidade" dos governantes releva do elevado serviço cívico que prestam, quando titulares de um cargo público: e quanto mais alto este é, mais exigente é a "accountability".

Tudo parecia bem no mundo otimista da "geringonça" até a realidade o atropelar. Veio primeiro a tragédia do incêndio de Pedrógão Grande; depois, a história rocambolesca do assalto e roubo dos paióis de Tancos; finalmente, a revelação das centenas de milhares de euros em cativações com que o governo conseguiu reduzir o défice e tirar o país do PDE. O último mês deve ter lembrado a António Costa a velha máxima de que um mal nunca vem só. E a acumulação de males parece ter abalado definitivamente a imagem beatífica de um governo até aqui insensível ao desgaste ou ao fracasso. A sorte de António Costa é que Catarina Martins e Jerónimo de Sousa se aburguesaram, comprometidos na "geringonça", e acham tudo mais ou menos normal: faltou a chuva em Pedrógão, as armas sumidas de Tancos não hão de fazer muito mal e as cativações foram o expediente para as devoluções e para nos tentarem convencer que a horrenda austeridade do teimoso Passos Coelho tinha desaparecido. Não espanta, mas entristece e revolta a forma hipócrita como alguns fazem política. Se fosse a direita a estar no governo, Passos não poderia pôr o pé na rua. Sendo a esquerda, Costa até pode ir de férias para Espanha. Por acaso, até pode ir – é um seu direito; não tenho a certeza é que devesse ter ido por estes dias, ao menos por respeito aos portugueses que andam a tentar reconstruir a vida em Pedrógão Grande e arredores.

António Costa é um caso político interessante. O ar bonacheirão e otimista faz às vezes lembrar Mário Soares. E com o respaldo dos afetos presidenciais, apostou em governar em condomínio com Belém, afagando o ego dos portugueses e achando que o discurso faz a realidade: desde que se diga que tudo vai melhor e que, sobretudo, se insista que dantes tudo ia mal, a maioria convence-se disso. Mas Costa, se lembra por vezes Soares (até na leveza com que plana sobre alguns dossiês), não tem o currículo nem a coragem do velho fundador do PS. Quando a realidade lhe estraga a retórica, hesita, tergiversa, sacode responsabilidades e empurra para a frente, tentando que não (lhe) estraguem muito o quadro. A sondagem pedida a um "focus group" para avaliar a sua imagem depois de Pedrógão Grande é uma imoralidade e define-o como poucas coisas.

Na hora do aperto (e com a conivência do Presidente Marcelo) o Primeiro-Ministro adota a técnica de perguntar, de perguntar muito, muitas coisas, a muita gente, jurando que nada ficará por se saber – sobre os fogos, o SIRESP, os militares e o mais que venha. Perguntar é fazer prova de existência. É óbvio que o Primeiro-Ministro e os seus ministros não podem saber tudo o que se passa nas suas áreas de tutela. Ainda assim, todavia, não deveriam saber um pouco mais? E, perguntam os cidadãos, quando é que, além de lançar perguntas, vai o governo começar a responder? Perguntar, perguntamos todos, os que não governamos. A função de quem governa consiste em responder, com o rigor, a exaustão, a transparência e a rapidez que os recentes e graves casos exigem. "Accountability" é isso mesmo; sem isso, a democracia é mera retórica. Esperemos bem que não seja!

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  • MASQUEGRACINHA
    12 jul, 2017 TERRADOMEIO 20:20
    Essa do sentido mais nobre, ético, e blá-blá, da democracia norte-americana deve ser galhofa... Se alguma vez existiu, já passou há tanto tempo a palavreado cínico de magnas leis tão remendadas, perdão, emendadas, que só um historiador especializado cheio de boa vontade lhes encontra algum do espírito inicial. É laracha, e para mais ilustrada pelo figurão (também nobre, ético, e blá-blá) que é hoje Grande Líder do Mundo Livre. Aí está um belo filho da sua bela nação, e a quem ninguém nunca acusará de ser democrata, nem mesmo de "mera retórica". Haja decoro no que se escreve, que o povo já vai sabendo ler. Quanto a Passos, o Sr. Sardica não lhe faz a devida justiça: ele é daqueles que nunca evitou pôr o pé na rua. Nunca viu motivos para isso, pois nunca foi hipócrita - apenas má pessoa, sem paciência para "piegas" que não querem sair da sua "zona de conforto". Alguma eventual racionalidade opinativa que o artigo tivesse afogou-se no azedume, quase rancor, que nele transparece. Sinceramente, o Sr. Sardica supunha que o défice tinha baixado porque o Costa andava a fabricar moeda?!! Mas, se calhar, não precisa frequentar serviços públicos...? Tão chocada surpresa e indignado rasgar de vestes até tornam os perguntadores cidadãos algo desconfiados... pela selectiva ignorância. Ou será uma pontinha de inveja por o Passos...? Ná, que ele é dos tais "éticos", de grande visão, e viu sempre para "lá da troika". Os perguntadores cidadãos sabem que o dinheiro não nasce nas árvores. Não é?
  • jeb
    12 jul, 2017 Montijo 13:50
    Quando se tem os midia, a esquerda e a populaça do seu lado... é fácil chegar-se a este (des)governo e passa a valer tudo, até mesmo encomendar sondagens a toda a hora para ver o grau de popularidade!!! é isto a democracia???