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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu, nem fariseu

Ronaldo: comprar “filhos” é imoral

07 jul, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


Será que Ronaldo pagou IVA pelos filhos? Não, não se riam, porque o caso não é para rir. Se Ronaldo pagou uma fortuna à barriga de aluguer e se pagou outra fortuna à clínica, então estas crianças foram de facto adquiridas mediante o pagamento de alguns impostos.

Milionários como Elton John e Cristiano Ronaldo compraram os seus filhos no mercado das barrigas de aluguer. Esta é uma prática imoral, aliás, é um retrocesso civilizacional, porque devolve o ser humano à categoria de bem transacionável, retira ao ser humano o seu carácter sagrado, inviolável e não comercializável, transforma a vida humana em algo equivalente ao carro de luxo. Isto devia ser dito de forma clara por um coro indignado de milhões, mas não se ouve nada, nem um pio, nem uma hashtag, só alguns colunas de opinião dispersas. Não se percebe o silêncio. E não se percebe a forma como o debate tem sido introduzido na sociedade. Fala-se dos "afectos" da pessoa que quer muito ser pai; diz-se que essa pessoa tem "o direito a ser pai". Não, não tem. Ser pai ou mãe não é um direito, muito menos um direito natural. O que é de certeza um direito natural de todos os seres humanos é a garantia de que não podemos ser tratados como produtos submetidos às regras da oferta e da procura. Não pode existir um mercado para seres humanos. E, apesar de estar mascarado pelos "afectos" e pelo Instagram, este é um mercado de bebés humanos. Repare-se que nem sequer falo da separação atroz entre bebé e mãe, ou seja, nem sequer estou a invocar o direito à mãe de todas as crianças. Julgo que já estamos numa fase mais grave e profunda do debate: como é que em 2017, século e meio depois de Lincoln, a sociedade ocidental aceita que seres humanos adultos e vacinados transformem outros seres humanos em bens que podem ser comprados num circuito de fabricação, comercialização e lucro?

E será que Ronaldo pagou IVA pelos filhos? Não, não se riam, porque o caso não é para rir. Se Ronaldo pagou uma fortuna à barriga de aluguer e se pagou outra fortuna à clínica, então estas crianças foram de facto adquiridas mediante o pagamento de alguns impostos. Em 2017, bebés humanos geram lucros e impostos. Não é caso para rir, talvez seja caso para chorar.

Tão ou mais chocante do que o acto em si tem sido o silêncio acrítico da sociedade. Ronaldo ficou à espera de duas crianças da mesma forma que nós ficamos à espera de dois DVD encomendados na Amazon, mas não houve "ondas de choque" nem hashtags de indignação. Ronaldo encomendou crianças da mesma forma que encomenda fatos no alfaiate ou carros no stand, mas não houve "polémica"; as redes sociais não se "incendiaram", como agora se diz. Se as hordas da net não se insurgiram, as figuras da elite também não. Onde é que estão os intelectuais e políticos que ganham a vida a criticar os "ricos"? Aqui está uma situação em que a riqueza é mesmo sinónimo de impunidade, aqui está um caso em que o dinheiro coloca o milionário literalmente acima do bem e do mal; aqui está uma situação em que a riqueza cria de facto uma esfera amoral onde não se fazem perguntas morais ("será legítimo fazer isto?") e onde só se fazem perguntas materiais ("é possível fazer isto? Se sim, quanto é?"). Onde estão os indignados do costume?

E onde é que estão os autoproclamados defensores das crianças e os pediatras famosos? Aqui está uma situação em que o superior interessa da criança é rasgado. Para terminar, onde estão os constitucionalistas, os professores de direito, os intelectuais públicos, os senadores, os comentadores, os teólogos? Como dizia há pouco, aqui está uma clara violação da sacralidade da vida humana.

Este e outros silêncios revelam um deserto amoral. Nós, enquanto sociedade, estamos moralmente desarmados. A sociedade pós-moderna não tem ferramentas mentais e morais para se reconstruir, para reconstruir a decência, para desenvolver um discurso que contemple o certo e o errado, a decência e a indecência. Durante décadas, a linguagem e os raciocínios morais foram atacados e retirados do espaço público. Só se aceitava a argumentação técnica (que é amoral por natureza) ou o discurso cínico e engraçadista (que também é amoral por natureza). O resultado está à vista: a sociedade nem sequer conhece as palavras necessárias para se insurgir moralmente contra a comercialização de seres humanos.

Comentários
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  • Cristina
    16 ago, 2017 Oeiras 12:58
    Em primeiro lugar a moral deve começar pelos políticos que geram leis que permitem seres humanos serem gerados de proveta e inseminados em barriga estranha ao progenitor masculino, a legalização de clínicas que promovem a gestação por barrigas de aluguer. Desde o momento em que todos os mecanismos estão legalizados qualquer endinheirado tem a tentação de recorrer a esses serviços, evitando assim partilhar o novo ser com a progenitora que lhe trará mais segurança , uma vez que evitam conflitos de interesse entre duas partes. Moral? onde moras?
  • Mafalda
    08 ago, 2017 Lisboa 22:45
    Henrique RAPOSO, é mesmo isso que eu penso. Como é que a sociedade reage assim? Todas as crianças têm direito a uma mãe ,e Ronaldo priva os seus disso. Muito egoísmo
  • Anabela França Pais
    21 jul, 2017 Ceira 17:39
    Boa tarde, Henrique Raposo. Já escrevi algo parecido com este tema, os filhos ficam para último plano, actualmente, e compram-se; escrevi em forma de conto, neste meu último livro: CONTOS DE CEIRA AO LUAR. O problema é que a literatura portuguesa não é lida, prefere-se sempre o romance estrangeiro. Aliás, deve dar jeito que não se aprenda muito sobre ética e moral... Ficamos mais fracos! Um abraço amigo.
  • E Emanuel Guedes
    18 jul, 2017 Alverca 17:07
    Bem-haja! Temos de facto falta de pessoas com opinião forte e humildade para a exprimir de forma transparente e aberta. O Henrique faz isso bem, tão bem que todas as pessoas que aqui comentam foram tocadas, não ficam indiferentes. Muito bom. O problema é a sociedade que se diz tolerante não o ser: é-o indiferente, apenas isso. Mas é esta indiferente que corrói as bases, que não suscita a indignação e as tomadas de posição; daí a falta de opiniões, comentários e muitos apontar de dedo àqueles que se manifestam. Apesar de saber que aquilo que te move está muito longe dos comentários que aqui se escrevem, não posso deixar de te dar, Henrique, os parabéns pelos artigos de opinião que escreves de uma forma tão clara e objectiva. Este é "só" mais um deles, que subscrevo, em especial pelo alerta do pagamento de IVA. :) Cordialmente, E Guedes
  • José Manuel Seruya
    18 jul, 2017 Lisboa 16:41
    Agradeço ao Henrique Raposo (que não conheço) a clareza e a justeza do seu discernimento, que subscrevo inteiramente. Sou um admirador do Cristiano Ronaldo, utilizo muitas vezes o seu exemplo de vida profissional nas minhas intervenções como professor universitário, formador e consultor; vibro com a sua maneira de jogar, estou-lhe eternamente grato pelo seu papel no futebol português, em especial, como é óbvio, na conquista do Euro 2016. Este seu gesto de "comprar filhos" deixou-me tristíssimo.
  • Paulo Santos
    17 jul, 2017 Ericeira 23:29
    Deste senhor é sempre a mesma coisa: conservadorismo bastante para distorcer toda a reflexão. Mas desafio a avaliar a moralidade daqueles que não "encomendando" os filhos, aceitam-nos por terem sido fruto de "acidentes" e não de uma decisão de querer ter filhos. Ser pai e mãe é muito mais que conceber filhos. Cada um só tem que ser responsável pelas decisões que toma. Este senhor arma-se sempre em dono da verdade mas em matéria moral nem a Igreja Católica tem dogmas.
  • Rui Lima
    17 jul, 2017 Porto 16:25
    Tenho ideia que você é um homem de direita. Eu não sou. Subscrevo totalmente, na íntegra, todo o texto que aqui escreveu. Cumprimentos
  • agostinho
    17 jul, 2017 uk 14:52
    E muito triste tanta criança no mundo a morrer a fome e esperando um novo lar e este atrasado pagando para ter filhos , palavras para que.
  • atila
    17 jul, 2017 donas 13:43
    Deram fortuna à família da barriga de aluguer? Que grande treta uns meros 10.000 USD à mexicana e adiós. A providência há-de encarregar-se destes mamadeirenses, um dia!
  • Luís Guimarães
    16 jul, 2017 Paços de Ferreira 01:45
    Até concordo com tudo o que está aqui escrito mas em contrapartida compreendo o Ronaldo... Assim não tem que aturar mulheres 😂😂😂