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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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"Sobre a nudez crua da verdade…"

28 jun, 2017 • Opinião de José Miguel Sardica


O Portugal de hoje, campeão europeu de futebol e da Eurovisão, é o mesmo onde 64 portugueses morreram (fora as quase três centenas de feridos e o património destruído), entre as chamas.

A tragédia de Pedrógão Grande tem já, infelizmente, lugar reservado em qualquer lista das maiores catástrofes registadas desde que, a partir de 1974, a democracia e o progresso chegaram a Portugal. O caso, que os poderes não quereriam tornar político, já o é, visto que, passada a autocomplacência do governo e a paciência da oposição, se usam os incêndios para pingue-pongue argumentativo; e precisa de ser político, embora não por causa dos remoques partidários.

Fugindo das imagens e sentimentos dos media, fui em busca de números para tentar contextualizar a enormidade ocorrida.

Segundo os dados da Pordata, em 1960, 61% da população portuguesa residia em lugares com menos de 2 mil habitantes; em 2011, essa percentagem baixara para 38,8%. Em tendência contrária, os portugueses que viviam em povoações grandes (mais de 10 mil habitantes), subiram de 22,6% para 42,6% nesse lapso de tempo – um meio século em que a população total aumentou de 8,8 milhões para 10,5 milhões. Ora, em 1980 (a base de dados não tem registos anteriores), houve 2350 incêndios, correspondendo a uma área ardida de 44 mil hectares; em 2015, as ocorrências totalizaram 15850 e a área ardida foi de 64 mil hectares.

Em 35 anos, apenas 2008 e 2014 tiveram menos área ardida do que o ano inicial desta série, 1980. Foi a partir da década de 1960 que o êxodo rural, fruto da miragem urbana, acentuou a litoralização do país, cavando (ainda mais) o dualismo com o interior. Fora da faixa que liga Setúbal a Braga e da macrocefalia de Lisboa, o interior ficou com menos gente, com gente mais velha e hoje muito velha, captando menos atenção e menos investimento, ou porque o retorno económico é mínimo ou porque ali há menos votos a conquistar.

Desde a racionalização administrativa do liberalismo oitocentista até aos entusiasmos ruralistas do Estado Novo, os políticos esforçaram-se por conhecer o território e os seus recursos e por ordená-lo e rentabilizá-lo – mais não fosse para poderem cobrar impostos e recrutar mancebos. Com a democracia, a terciarização, a Europa e o “inverno demográfico”, o país profundo ficou irremediavelmente para trás. Um tal desequilíbrio produziu uma realidade que se diria esquizofrénica: moderna e triunfante numas coisas, mas subdesenvolvida e arcaica noutras.

O Portugal da Expo’98 foi também o do desastre da Ponte de Entre-os-Rios (2001, 59 mortos) ou, mais tarde, do desastre das cheias na Madeira (2010, 47 mortos). E o Portugal de hoje, campeão europeu de futebol e da Eurovisão, é o mesmo onde 64 portugueses morreram (fora as quase três centenas de feridos e o património destruído), entre as chamas.

Não quero aqui discutir as nuances técnicas da trovoada seca, do ataque ao fogo, do SIRESP, da Proteção Civil, da GNR e dos planos florestais, cumpridos ou incumpridos. O que é preciso, e isso é o mais importante, é dizer que Pedrógão Grande simplesmente não podia ter acontecido. Mas aconteceu.

Quando se raspa o verniz do “progresso”, as rugosidades do arcaísmo, da incúria e da irresponsabilidade estão lá. E está lá um Estado que falhou na sua mais básica obrigação de proteger as vidas e os bens dos seus cidadãos. Invertendo os termos da máxima literária de Eça de Queirós, que usei para título, debaixo do “manto diáfano da fantasia”, patrocinado pelo discurso oficial, pelos afectos e pelo servilismo acrítico de muitos media, está a “nudez crua da verdade”. E a verdade é que toda a parafernália do “progresso” não evitou que, a uns 50 km da cosmopolita Coimbra do século XXI, morressem 64 portugueses, tão desprotegidos e abandonados como se vivessem ainda no século XIX.

Comentários
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  • A. Rodrigues-Lopes
    30 jun, 2017 Viseu 22:59
    Agora que já passam vários dias após a desgraça dos que morreram, os que estão feridos, os que ficaram sem os seus bens e, na sequência dessa tragédia infame (porque vergonha das vergonhas duma democracia inoperante, inconsequente, e irresponsável!), se ter falado tanto e se ter escrito tanto, fazendo brotar lágrimas sinceras e genuínas e carpir outras lágrimas hipócritas e desumanas, esgrimindo argumentos, manipuladores da verdade crua e nua que entra pelos olhos dos cidadãos do Povo (escluídos, obviamente, os políticos e outros tais enfeudados a interesses duvidosos!), passados dias dizia, quem acredita nesta patranha monumental de medidas adequadas à prevenção e acções justas que o País merece! Olhem para o passado!! Quanta inoperância ou falência democrática se tem constatado!? Está tudo minado, numa abusiva rapina de tudo o que é o Património pátrio! A coisa pública, nesta república das bananas está degradada e a saque! Faz-se tudo para proteger interesses de reizinhos intocáveis, enquanto Portugal e os portugueses que não esses fenecem. Alguém de responsabilidade disse, no dia da tragédia: amanhã o País vai fazer cumprir a Lei, começando por arrancar todos os eucaliptos que infestam as estradas em que os cidadãos têm direito absoluto a circular com segurança, por isso a estrada onde os eucaliptos mataram as pessoas vai ser a primeira! Se houvesse determinação e vontade e a democracia funcionasse era assim que funcionaria! Deixemo-nos de água benta , lágrimas de crocodil
  • Ângela Veloso
    29 jun, 2017 Lisboa 13:16
    Estranho, como José Miguel Sardica continua a censurar comentários que não gosta. Isto revela falta de carácter e muita insegurança na opinião emitida.
  • Para refletir...
    29 jun, 2017 Almada 10:47
    O comentador Capeta não compreendeu, eu falei no poder eleito e não eleito e não em eleitos ou derrotados. Os derrotados não são poder. Parece que ele não sabe que existem poderes que não resultam de eleições, para os quais não há eleições, logo não eleitos. Os chamados derrotados, foram derrotados em eleições. Parem para pensar, há mais vida para além do poder político e parece que a diversão impede que vejam isso.
  • Capeta
    28 jun, 2017 Olhão 19:38
    O comentador Capeta procura não se deixar manipular pela comunicação social. nem toma partido por eleitos ou derrotados. Já o "refletidor" parece ter sentido o toque da critica, aos (i)"responsáveis inúteis"... E por aqui fico, porque não costumo discutir com gente que desvaloriza a opinião alheia. Que lhe faça bom proveito a suas "verdades alternativas".
  • MASQUEGRACINHA
    28 jun, 2017 TERRADOMEIO 19:17
    Globalmente de acordo com o que é escrito - aliás, quem discordaria de tão justa indignação perante "um Estado que falhou" ou o ter acontecido o que "simplesmente não podia ter acontecido"? Que as estatísticas breves sobre a área ardida suponho que estejam corretas, e os salpicos socio-económico-políticos explicativos são salpicos aceitáveis. Já quanto ao êxodo rural ser "fruto da miragem urbana" tenho sinceras dúvidas. Sendo descendente de pessoas da Beira Profunda, que rumaram a Lisboa em 1960 com um recém-nascido nos braços e cotão nos bolsos, posso garantir ao Sr. Sardica que o fizeram para não viverem numa "humilde casinha rural" (de facto, menos que uma barraca), a comer o que a terra dá, em condições próximas do servo da gleba no que toca a trabalho. Por isso, para não viverem como animais de carga, e não atraídos por qualquer "miragem" das luzes da cidade. É um salpico, esta história pessoal: mas encontrará tantos destes salpicos na literatura que estuda estas temáticas que só por liberdade poética se compreenderá a explicação do fenómeno por "miragem". Fora a indignação, o artigo não apresenta quaisquer soluções, e evita até, deliberadamente, questões polémicas. Mas não é nelas que reside a necessária explicação do que, no caso concreto, se passou? Se não, o melhor será aceitarmos o "acto de Deus", remendar e seguir... Quanto às tristezas do interior, não me lembro de o Sr. Sardica se ter debruçado sobre o assunto antes. É, infelizmente, uma questão de oportunidade.
  • Para refletir...
    28 jun, 2017 Almada 17:05
    O comentador Capeta, é um exemplo de alguém que já foi manipulado pela comunicação social e não consegue ver mais nada além do poder eleito, e é isso que a comunicação social quer. Pior que o poder eleito onde até há transparência, é o poder não eleito que não sabemos bem quem é e que não responde a perguntas. Parem para pensar!
  • Capeta
    28 jun, 2017 Olhão 15:59
    Os "responsáveis" parecem moscas a marrar contra uma lampada. Logo após um desastre, já se anuncia outro. As comunicações que falharam nos incêndios, continuam a não funcionar nos aeroportos, estádios, centros comerciais e outros lugares sensíveis. Aparentemente, não aprendem, nem se esforçam para o fazer. Na verdade, todos somos culpados porque condescendemos na nomeação e permanência de inúteis em cargos que lhe são indevidos, e a nossa tolerância acaba por ser tão trágica, como os erros que essa gente comete. Parece que o bom povo português, pouco participativo na gestão publica, se preocupa mais com o posterior espetáculo da caridade, que com medidas de precaução que evitem desgraças, continuando a deixar que "os outros resolvam" o que nos pode acontecer.
  • Leonor
    28 jun, 2017 santa comba dão 15:48
    Sr. João Galhardo, A foto é a mesma para todos os textos que o Dr. Sardica escreve. Pegar por ai é pura mesquinhez! Ele não é um mero jornalista, é um senhor íntegro e bastante inteligente. Tive muito gosto em te-lo como meu professor de historia na universidade. Para a próxima, pense antes de falar. Que patético!
  • COSTA DEMAGOGO
    28 jun, 2017 Lx 14:44
    Ó Sr. Galahardo, pelo amor da santa. Acha mesmo isso do autor dos factos relatados? Pior não será o mestre da pantomina chamado Costa na galhofa ontem aquando da apresentação do candidato Medina à CML? Não o entristece o facto de um dos pais desta mortandade ter sido exactamente o mestre da pantomina chamado Costa quando renegociou o SIRESP com a assessora jurídica Constança, hoje Ministra desaparecida nos fogos da zona Centro..:Se era assim tão mau porque renegociou o contrato? E os kamov, outro belo exemplo do despesismo dos socialistas, que não voam e que foram negociados pelo amigo do Primeiro Ministro pantomineiro chamado Lacerda Machado? Não se indigna com isso? Não se indigna com o Estado passa culpas do Siresp para a GNR, da GNR para a Desproteção Civil e desta para a Ministra inexistente do MAI? Olha que estou manifestamente indignado e varado com tanta incompetência e laxismo do governo das esquerdas que temos...Este país converteu-se na maior anedota com esta geringonça do kamarada Kosta e dos seus aliados da esquerda caviar que agora já nem se indigam, tantos os elefantes que engolem...
  • Para refletir...
    28 jun, 2017 Almada 14:01
    O problema é quando alguns só vêm (ou querem ver) uma parte da realidade. E o Portugal de hoje, campeão europeu de futebol e da Eurovisão, é o mesmo onde também: - Existe opacidade nos poderes o que pode levar a abusos sobre os mais fracos desprotegidos. Isto só possível com a cumplicidade da impressa. - Existe censura na imprensa, o que faz lembrar antes do 25 de Abril. - A comunicação social não nos mostra o país real, mas o país que querem que as pessoas conheçam. Isto faz parte da manipulação que existe. Provas? Basta ver a diversão que existe. - Temos um povo que gosta muito de "circo" e em geral só se une onde haja "circo". Esta é a nudez crua da verdade.