28 jun, 2017
A tragédia de Pedrógão Grande tem já, infelizmente, lugar reservado em qualquer lista das maiores catástrofes registadas desde que, a partir de 1974, a democracia e o progresso chegaram a Portugal. O caso, que os poderes não quereriam tornar político, já o é, visto que, passada a autocomplacência do governo e a paciência da oposição, se usam os incêndios para pingue-pongue argumentativo; e precisa de ser político, embora não por causa dos remoques partidários.
Fugindo das imagens e sentimentos dos media, fui em busca de números para tentar contextualizar a enormidade ocorrida.
Segundo os dados da Pordata, em 1960, 61% da população portuguesa residia em lugares com menos de 2 mil habitantes; em 2011, essa percentagem baixara para 38,8%. Em tendência contrária, os portugueses que viviam em povoações grandes (mais de 10 mil habitantes), subiram de 22,6% para 42,6% nesse lapso de tempo – um meio século em que a população total aumentou de 8,8 milhões para 10,5 milhões. Ora, em 1980 (a base de dados não tem registos anteriores), houve 2350 incêndios, correspondendo a uma área ardida de 44 mil hectares; em 2015, as ocorrências totalizaram 15850 e a área ardida foi de 64 mil hectares.
Em 35 anos, apenas 2008 e 2014 tiveram menos área ardida do que o ano inicial desta série, 1980. Foi a partir da década de 1960 que o êxodo rural, fruto da miragem urbana, acentuou a litoralização do país, cavando (ainda mais) o dualismo com o interior. Fora da faixa que liga Setúbal a Braga e da macrocefalia de Lisboa, o interior ficou com menos gente, com gente mais velha e hoje muito velha, captando menos atenção e menos investimento, ou porque o retorno económico é mínimo ou porque ali há menos votos a conquistar.
Desde a racionalização administrativa do liberalismo oitocentista até aos entusiasmos ruralistas do Estado Novo, os políticos esforçaram-se por conhecer o território e os seus recursos e por ordená-lo e rentabilizá-lo – mais não fosse para poderem cobrar impostos e recrutar mancebos. Com a democracia, a terciarização, a Europa e o “inverno demográfico”, o país profundo ficou irremediavelmente para trás. Um tal desequilíbrio produziu uma realidade que se diria esquizofrénica: moderna e triunfante numas coisas, mas subdesenvolvida e arcaica noutras.
O Portugal da Expo’98 foi também o do desastre da Ponte de Entre-os-Rios (2001, 59 mortos) ou, mais tarde, do desastre das cheias na Madeira (2010, 47 mortos). E o Portugal de hoje, campeão europeu de futebol e da Eurovisão, é o mesmo onde 64 portugueses morreram (fora as quase três centenas de feridos e o património destruído), entre as chamas.
Não quero aqui discutir as nuances técnicas da trovoada seca, do ataque ao fogo, do SIRESP, da Proteção Civil, da GNR e dos planos florestais, cumpridos ou incumpridos. O que é preciso, e isso é o mais importante, é dizer que Pedrógão Grande simplesmente não podia ter acontecido. Mas aconteceu.
Quando se raspa o verniz do “progresso”, as rugosidades do arcaísmo, da incúria e da irresponsabilidade estão lá. E está lá um Estado que falhou na sua mais básica obrigação de proteger as vidas e os bens dos seus cidadãos. Invertendo os termos da máxima literária de Eça de Queirós, que usei para título, debaixo do “manto diáfano da fantasia”, patrocinado pelo discurso oficial, pelos afectos e pelo servilismo acrítico de muitos media, está a “nudez crua da verdade”. E a verdade é que toda a parafernália do “progresso” não evitou que, a uns 50 km da cosmopolita Coimbra do século XXI, morressem 64 portugueses, tão desprotegidos e abandonados como se vivessem ainda no século XIX.