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Opinião de Manuel Pinto
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​Há inferno

19 jun, 2017 • Opinião de Manuel Pinto


Feita a experiência de que há mesmo inferno, há-de chegar a hora de tomar decisões realistas e exequíveis.

“Bastaram alguns segundos e tudo ficou reduzido a cinzas. Num momento as chamas estavam a quilómetros, noutro já estavam em cima de nós." A imagem é de um sucateiro da localidade de Adega, no concelho de Pedrógão Grande e é-nos trazida pela jornalista do "Público" Sandra Rodrigues, na edição digital do jornal. Como "as ondas do mar que tudo levam à frente” – ajuntava. Eram as imagens do inferno, que nos pintavam antigamente na catequese, tornadas realidade, dizia alguém num canal de rádio.

Estes depoimentos e as largas dezenas de corpos carbonizados, a pontuar as estradas e caminhos por onde as labaredas galoparam, surgem de um cenário ainda a arder, com muita gente desalojada, refugiada e destroçada, muitas famílias inquietas, centenas de profissionais a procurar combater o caos e acolher os que fugiram. Um país em comoção, muita gente que de longe de Portugal se interessa, envia mensagens, manifesta solidariedade.

No meio deste inferno, quando é prioritário acudir, acolher, “consolar os tristes” e “enterrar os mortos”, eis que se soltam os ‘opinadores’ e até mesmo os especialistas, que falam do que não sabem, mesmo antes de se perceber melhor o que se passou e a resposta que foi dada. Que ajuízam de forma simplista situações altamente complexas. Que buscam desesperadamente culpados, antes do conhecimento dos factos. Múltiplos sinais de querer cavalgar o momento, mesmo que à custa de instrumentalização de cadáveres.

Percebe-se o desabafo e a revolta de quem se viu cercado pelas chamas. Não se pode aceitar quem, de longe, atira gasolina para a fogueira, desrespeitando o luto e o choque do seu semelhante e alheio à entrega, até à exaustão, de quem luta no terreno. Tal ruído e falta de contenção não ajudam nada e só contribuem para inquinar a necessária reflexão e tomada de decisões, uma vez feito o apuramento dos factos.

Os dias de luto nacional deveriam servir para resolver o que é mais urgente, acompanhar quem precisa, enterrar os mortos, conhecer e avaliar o que se passou.

Como já vimos, no meio da tragédia, há também histórias admiráveis de coragem e de interajuda que os que sobreviveram têm para contar. Há um grande respeito a ter por quem prefere o silêncio. Importa não esquecer as crianças e as suas perguntas, nas zonas mais afastadas e na casa de cada um. Feita a experiência de que há mesmo inferno, há-de chegar a hora de tomar decisões realistas e exequíveis. A floresta deixou de ser apenas um problema de quem a tem. É um grave problema de todos nós.

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  • MASQUEGRACINHA
    19 jun, 2017 TERRADOMEIO 17:08
    Embora tenha nascido e vivido a maior parte da minha vida em Lisboa, já há alguns anos que resido numa pequena vila no centro do País, rodeada por serras. Assisti, entre outros, aos grandes incêndios de 2003 e 2005, que devoraram a floresta, sitiaram as aldeias e chegaram às portas das zonas urbanas. Vi helicópteros, em manobra desesperada, reabastecerem dentro da própria vila, numa piscina pública e numa pequena ribeira, raspando o balde nos fundos. Conheço bem todos os sítios aqui à volta: são o passeio favorito de sábado. Quer dizer, eram. A agora chamada "estrada da morte" era quase caminho obrigatório para o regresso a casa - chamávamos-lhe até, por piada, o "caminho do cão", que, depois de vadiar, volta à casota... Este sábado não saí, estava demasiado calor. Ao anoitecer, na minha varanda, assisti à trovoada e súbita ventania, tudo muito breve. Metade do céu era de um negrume opaco, orlado, em toda a linha visível do horizonte, pelo brilho vermelho do fogo vivo. Mais uma visão inesquecível. Soube ontem que, por essa hora, morriam em tortura os que tentavam escapar no meu antigo "caminho do cão"... O inferno sempre existiu. E, porque ao Verão dos incêndios se segue o Inverno das hibernações, nada vai mudar, a não ser a paisagem - que, como se sabe, é todo o país que não é Lisboa. Daqui a uns anos, as ruínas restantes e respectivas licenças camarárias serão redescobertas, feitos lindos restauros e belos negócios, e aplaudiremos todos muito o "reordenamento territorial".