Tempo
|
Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
A+ / A-

​À espera da boa notícia

09 mai, 2017 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Encontramos, pois, no actual Papa, tão acessível quanto complexo, tão amável quanto desafiador, o fortalecimento e a revitalização daquela que pode ser a linha mais sólida, mais revolucionária e mais profundamente reveladora do que é o fundamental coração cristão.

Como diz uma amiga minha, de inserção eclesial variável mas relativamente informada, “era disto que estávamos à espera”. Desde a sua bancada, na berma da prática religiosa, a minha amiga avalia a prestação do Papa Francisco com enorme veemência e o desassombro induzido pelo “escândalo da normalidade”, como lhe chamou Elisabetta Piqué.

De facto, o Papa, das muitas coisas inauditas e inesperadas que consegue criar, também granjeou um efeito invulgar para a cultura dominante ao fazer com que as pessoas se detenham mais naquilo que faz do que naquilo que aparenta. De facto, contrariamente a todos os demais retratados nas capas da imprensa mundial, as pessoas, aos magotes e num entusiasmo rubro, quase histérico, abeiram-se do Papa Francisco sobretudo pelo prazer de partilhar um momento de proximidade com alguém que, mais do que bem na vida, parece estar de bem com a vida. Ele é o chefe da Igreja Católica, de muitos milhões de católicos mas, e usando uma expressão corrente, é também o “vizinho do lado” que nos alegra convidar para tomar um café. Há, pois, no Papa, uma inerente lição de liderança que é, à vez, involuntária – porque não busca o poder nem o reconhecimento – e completamente intencional – porque procura servir, com resiliência e consistência, num radicalismo de caridade e missão (como apontou a todas as pessoas de bem, na recente viagem ao Egipto) que visa eficazmente quebrar as barreiras dos muito humanos egoísmo e medo da diferença.

Há, pois, no Papa Francisco, uma vida de seguimento de Cristo que recria a sua centralidade na luta contra a pobreza e o exercício, sempre considerado tão perturbado, do desprendimento face aos favores materiais do mundo, numa liberdade genuína que revela apreço pela coisa humana, inteligência e emoção em partes iguais. O Papa pode merecer a atenção pop da cultura mediática mas a sua intervenção reconstrutora – das estruturadas, das ideias, das pessoas – vai tão longe e é tão sábia que, mais do que levantar protestos na Cúria ou entre “sectores” isto ou aquilo, conseguiu reconciliar os católicos com o Papa Bento XVI (em grande medida sempre fragilizado perante a opinião pública pelas anteriores funções na Defesa da Fé, pela complexidade audaciosa do seu discurso teológico e, finalmente, pelos fãs defraudados com a sua resignação) e accionar definitivamente o motor do II Concílio do Vaticano. Encontramos, pois, no actual Papa, tão acessível quanto complexo, tão amável quanto desafiador, o fortalecimento e a revitalização daquela que pode ser a linha mais sólida, mais revolucionária e mais profundamente reveladora do que é o fundamental coração cristão. E tal acontece de uma forma perfeitamente inculturada – porque o Magistério, quase de repente, mostra que a Igreja conhece as pessoas e as pessoas compreendem claramente este novo discurso – e que, iniciando-se com o Papa João XXIII, se estrutura ao longo dos últimos cinquenta anos pela mente, mão e coração de um conjunto de homens e líderes tão diferentes quanto extraordinários.

E, por muito alto que soem as vozes críticas contra o impacto que a acção do Papa Francisco tem nas consciências mais devotas e disciplinadas, e mesmo que se continue a rever com uma minúcia desconfiada e doentia qualquer das suas intervenções e ofertas de Magistério, esta Revolução parece imparável pois está, como sonhado pelo Concílio, nas mãos de uma Igreja Povo de Deus, descentrada, entregue a cada crente, apostada na humanização do mundo e acolhedora de todas as condições, sempre passíveis de se aperfeiçoar, de se santificar. E, mais do que solicitar católicos de esquerda, como sugeria o Presidente da República, convida a uma revisão sobre o que é a esquerda e sobre o que é, hoje, a direita.

A espera já habitava Portugal em 1917 e, agora, a esperança revive-se no desejo de receber bem o Papa, talvez mostrar-lhe que, aqui, há um coração ligeiramente diferente, um modo próprio de se ser país e de se ser Igreja, uma boa notícia do acolhimento que se vive em Fátima, no segredo do íntimo de cada pessoa, mas ao qual é difícil ficar-se indiferente. E naquele sítio, onde as manifestações de fé são tão comoventes e o clima tão surpreendente, que progressista é a Igreja, finalmente, por chamar a atenção para as crianças, não apenas como cândidas e confiantes na sua ignorância e improdutividade, mas como as pessoas completas que já são. Em Portugal, há anos que a educação religiosa propõe aos mais pequenos que pensem sobre a sua dignidade e o seu valor. Não é preciso chegar “a grande” para se ser grande.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Marco Visan
    09 mai, 2017 Lisboa 23:08
    «com o Papa Bento XVI (em grande medida sempre fragilizado perante a opinião pública pelas anteriores funções na Defesa da Fé, pela complexidade audaciosa do seu discurso teológico e, finalmente, pelos fãs defraudados com a sua resignação)...» Defraudados pela sua resignação? O papa Bento XVI tinha «parkinson» e, por isso, escolheu a resignação. Fãs defraudados com a sua resignação? Só se for na sua cabeça, Cristina Sá Carvalho. Inacreditável, é a Renascença ainda deixar que você mantenha uma coluna de opinião.
  • Alexandre
    09 mai, 2017 Lisboa 18:57
    O Sr. João Cabral tente ganhar dois dedos de testa e ganhe mais coragem para perceber aquilo que Fátima representa a nível de especulação, concorrência, negócio e lucro. Nos próximos dias, Fátima vai ser igual a um casino de luxo. Muito dinheiro vai entrar nos cofres do Santuário, directamente para o mealheiro da Igreja Católica que Cristina Sá Carvalho considera ser progressista.
  • MASQUEGRACINHA
    09 mai, 2017 TERRADOMEIO 17:10
    Não podendo destruir um corpo estranho e ameaçador da sua estrutura, qualquer sistema vivo organizado tenta integrá-lo : assim nascem as pérolas e também alguns cancros, muitas imunizações e saltos evolutivos, e muitíssimas estrelas pop. Tenho-me lembrado muito do sedicioso filme "As sandálias do pescador", e ainda mais da parábola do filho pródigo, e sobretudo do irmão do filho pródigo - aquele que se sentia aborrecido e injustiçado pela alegria do pai com o regresso do filho indigno. Como se o pai só pudesse ser dele, porque era com ele que vivia; como se na casa do pai só pudesse estar ele, porque nela sempre estivera; como se a Boa Nova fosse para ele, que sempre a conhecera. No fim, decidiu o pai - e o irmão do pródigo lá teve que ir assar o vitelo. Tudo isto sobre o Papa Francisco, a Boa Nova, e algumas palavras e comportamentos individuais e institucionais mais dignos de Clube Privado Com Direito de Admissão Reservado a Sócios do que de Casa do Pai.
  • Joao Cabral
    09 mai, 2017 Meda 14:19
    Os senhores galhardo e botelho são uns grandes iitelectuais ,todos os dias vêm para aqui mandar bitaites come se eles fossem os donos da razão , já metem dó por favor dediquem-se á pesca e não digam tanta asneira que já cansa , haja paciência irra .
  • António Costa
    09 mai, 2017 Cacém 11:46
    Ao longo de milhares de anos os "escravos" trabalhavam para os "grandes", de Sol a Sol, até morrer. E o que dizia a "Religião"? - Que no "Além", era igual, senão ainda pior! E os sacerdotes ao serviço dos "grandes", mantinham os escravos no "terror religioso", "bem comportados". Aparece o Cristianismo e os "grandes" continuam a fazer o mesmo. Mas "azar", o Cristianismo é uma Religião de "anti-poder". Uma Religião dos "escravos" contra os "grandes". Uma Religião em que "um camelo tem mais possibilidades de passar pelo buraco de uma agulha de um 'grande e poderoso' de entrar no Reino dos Céus". Com o Cristianismo, os "grandes" deixam de "mandar no Além". O Cristianismo é uma religião de "anti-poder" que vai "abrir caminho" ao respeito pelo "outro", pela diferença e por aquilo que no Ocidente chamamos os "Direitos Universais" do Ser Humano.
  • João Galhardo
    09 mai, 2017 Lisboa 10:01
    Esta mulher se voltasse ao passado, estava entre a multidão que aceitava os autos-de-fé e a gritar «vivas» à Igreja por queimar os condenados. Escreve como se a Igreja católica portuguesa fosse uma instituição sem mácula. Escreve como se o cristianismo pregado pelos papas fosse puro. Cristina Sá Carvalho consegue mesmo chegar ao ridículo.
  • Miguel Botelho
    09 mai, 2017 Lisboa 08:09
    «E naquele sítio, onde as manifestações de fé são tão comoventes e o clima tão surpreendente, que progressista é a Igreja, finalmente, por chamar a atenção para as crianças, não apenas como cândidas e confiantes na sua ignorância e improdutividade, mas como as pessoas completas que já são» Progressista, a nossa Igreja? A Cristina Sá Carvalho, hoje, foi longe demais com o seu artigo.