Emissão Renascença | Ouvir Online
Luís António Santos
Opinião de Luís António Santos
A+ / A-

​“Ontem à noite éramos 120, agora somos 22”

18 abr, 2017 • Opinião de Luís António Santos


A crise no Mediterrâneo é, por tudo isto, uma espécie de oportunidade definidora para o Velho Continente, sendo que não há já muito mais espaço de manobra para hesitações.

Foi apenas um testemunho, daqueles que ouvimos já em modo ‘semi-desligado’ num noticiário em que cada vez mais se mistura o relevante com o acessório. Dizia um dos cerca de 4.500 migrantes resgatados no sábado no Mediterrâneo: “Ontem à noite éramos 120 – homens, mulheres e crianças – e hoje já só somos 22”.

Temos, numa frase simples, toda a brutalidade de um processo que acontece à nossa porta e que parece continuar a não incomodar de maneira suficiente os dirigentes europeus. A Itália terão chegado, nos primeiros três meses deste ano, mais de 24 mil pessoas, sendo que 10% delas são menores não acompanhados. E a Europa – que o mundo, apesar de tudo, ainda projecta como um espaço diverso, multicultural, livre e com um mínimo de oportunidade para todos – mostra-se cada vez mais incapaz de lidar, de forma eficaz e respeitadora, com este desafio.

Temos também, na enunciação serena e despojada da tragédia que fez aquele migrante, motivação adicional para reflectir sobre o uso deliberado que o Papa fez, este ano, da palavra ‘vergonha’ na celebração da Via Sacra. Disse o Papa Francisco: “Vergonha por todas as imagens de devastação, de destruição e de naufrágio, que se tornaram comuns na nossa vida”.

A Europa edificada no pós-guerra, com base em ideias genericamente identificadas com uma social-democracia de raiz Cristã, deu lugar, a partir de meados da década de 1980, a uma Europa centrada no culto do ganho individual, no desmantelamento do Estado Social, na desregulação e no privilégio às acções de instituições financeiras. Muito do que a Europa deixou de fazer nos últimos 30 anos teve a marca desta leitura ideológica extremista. Foi pela sua mão que a Europa afastou de si os mais pobres e desfavorecidos – dizendo-lhes que eram ‘falhados’ (e empurrando-os para outros extremismos) – foi pela sua mão que a Europa escolheu fazer burocracia em vez de fazer política (com a sacralização de procedimentos orçamentais) e foi pela sua mão que a Europa abdicou de ser uma entidade activa em termos de política externa (e o modo como lidou com a Turquia e, no fundo, empurrou aquele país para a situação de radicalismo em que agora vive é exemplar).

A crise no Mediterrâneo é, por tudo isto, uma espécie de oportunidade definidora para o Velho Continente, sendo que não há já muito mais espaço de manobra para hesitações. Vai ser preciso escolher entre o abandono da ‘financialização’ de um protejo político ou o seu desmembramento completo. Uma Europa pela qual vale a pena lutar não pode olhar com indiferença para uma catástrofe e não pode fazer da dignidade humana apenas um fator numa equação. Esse tempo acabou.
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Indignada
    18 abr, 2017 Fig Foz 22:31
    Sr. Luís Santos..., não tem consciência real do que diz. De facto, a invasão europeia tem um desastre humano na sua base..., e muito oportunismo de gente sinistra, fundamentalista, que os usa para islamizar Europa. Ainda não tem consciência do que se está passado, de quais as verdadeiras razões? Fala em "...ideias genericamente identificadas com uma social-democracia de raiz Cristã,.." será que ainda não se apercebeu que a realidade europeia mudou radicalmente? Ou não tem consciência que vive num ambiente onde os genocídios estão legalizados, caso do ABORTO e da EUTANAZIA? A política actual é hedonista, está ao serviço do marxismo cultural, que usa a sinistra ideologia do género, bem como a invasão muçulmana para destruir a nossa liberdade, paz, cultura e valores Cristãos? Ingenuidade ou está acomodado desde que lhe encham a bolsa e a barriga? Quanto a essa malta, sejamos francos... eles não quiseram ser independentes? Então agora, assumam as suas consequências, sejam coerentes e honestos!
  • MASQUEGRACINHA
    18 abr, 2017 TERRADOMEIO 19:22
    Até que enfim, alguém que ouviu a clara e urgente mensagem do Papa Francisco! E que tem a coragem de opinar, de transmitir essa mensagem, de forma inequívoca, dando nome às coisas, apontando responsabilidades e consequências - as passadas e as futuras. É, infelizmente, uma raridade, mesmo na RR, onde os artigos de opinião (sem prejuízo de serem interessantes) tendem a ir ficando por profissões de fé, ou exposições mais ou menos cripto-filosóficas e mais ou menos cripto-moralistas, ou de fait-divers inócuas. Aqui, onde se suporia que o (repetido!) apelo do Papa Francisco teria mais eco, vai-se sistematicamente bolinando, sem nunca tocar em terra... Mas há esperança: há alguém que acha que "esse tempo acabou", e o diz, preto no branco. Muito bom, e muito bem escrito (como de costume, aliás). Fico à espera que a linha editorial da RR acorde, ou que outros opinadores sigam o exemplo. Pelo sim, pelo não, vou dando uma espreitadela ao Sr. Ribeiro Cristóvão - quem sabe? Talvez tenha mais alguma boa surpresa...
  • António Costa
    18 abr, 2017 Cacém 13:43
    Para Beaver: As "imagens" foram usadas como "figura de estilo", pelo Papa, como disse. O problema é que as imagens de vitimas de crianças (grandes planos) "só" aparecem, quando as vitimas pertencem ao lado dos extremistas islâmicos sunitas. Os patrocinadores destes extremistas, como Erdogan da Turquia, aparecem com crianças ao colo, em fotos "bastante" simpáticas. O problema é quando o Presidente dos EUA se mostra "profundamente chocado" com as "imagens" e responde com "figuras de estilo" chamadas " tomahawk"... . O problema são as manifestações em Londres a favor dos extremistas islâmicos em Alepo, por causa das "imagens". As "imagens" que "Deviam Ser Figuras de Estilo" , no "mundo real" são apenas "imagens" e estão a ser usadas como propaganda para um dos lados. E o "nosso lado", não é o do "terrorismo islâmico sunita".
  • Beaver
    18 abr, 2017 Donos de Algodres 10:52
    Oh António, a figura de estilo usada não significa que com a ausência de imagens os problemas não existam. Significa eu devemos ter vergonha do que se vê é sabe que existe. Para dizer mal também é preciso saber ler Português!!!!!!
  • Marco Almeida
    18 abr, 2017 Olhão 10:16
    A Europa pela qual valia a pena lutar não é esta que existe agora, eu voto pelo desmembramento desta coisa chamada UE
  • António Costa
    18 abr, 2017 Cacém 07:53
    "Vergonha por todas as imagens de devastação, de destruição", portanto o "problema" são as imagens. Se não aparecerem imagens "está tudo OK!", vivemos no Paraíso, que Maravilha! Assim esta tudo explicado! As imagens da guerra mostram um ataque na Síria com 89 mortos! Que Horror! Imagens! Milhões em mísseis tomahawk! Dois autocarros com 68 crianças, no total de 126 pessoas são mortas! Não há imagens das crianças feitas em bocados? Então, está tudo bem! Depois o "caso" da Turquia..... mas alguém empurrou a "Turquia"! A Turquia foi sempre uma ditadura! O que Mustafa Kemal Atatürk fez nos anos 20, do séc. passado foi transformar os "imãs" das Mesquitas em funcionários públicos! Os "imãs" repetiam Ordens do Governo! Para o cidadão turco "comum" não mudou nada! Fazia o que a Mesquita mandava, como sempre! Se as Leis "repetidas" nas Mesquitas eram islâmicas ou "inspiradas" nas Leis francesas Não Interessa! Isso não é Democracia! Só falta dizer agora que também "empurramos" Adolfo Hitler para o Nazismo, não?