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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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Sobre as nossas enfermidades e os nossos sofrimentos

11 abr, 2017 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Durante a semana a que chamam Santa, os cristãos de todo o mundo escutam a Palavra mais detalhada e mais comovente de todo o ano litúrgico.

A depressão é uma doença terrível e que atinge 300 milhões de pessoa em pleno império da ciência, da vitória da tecnologia e da santificação do consumo para o estímulo ininterrupto do crescimento económico das sociedades anónimas. Como ensina o muito estudado J. Vallejo, o eixo nuclear da depressão consiste numa tristeza vital e profunda que envolve a pessoa até afectar todas as esferas da sua relação com os outros e consigo mesma. Frequentemente, essa tristeza, absoluta e paralisante, é acompanhada por ansiedade, irritabilidade ou hostilidade, embora grande número de afectados se sintam profundamente inibidos, estuporosos. E, em muitas circunstâncias, os doentes depressivos também actuam autoagressivamente: pela tentativa de suicídio ou por condutas autodestrutivas como o abandono da medicação para as suas doenças crónicas, o alcoolismo, a bulimia, o tabaquismo ou a exposição continuada a situações de risco, nomeadamente na condução de veículos e na prática dos deportos «radicais».

Também há casos em que a tristeza é «substituída» por manifestações somáticas mas a depressão é sempre um estado de incapacidade de gestão do prazer, quer seja de o experimentar, de o antecipar ou de o procurar, o que acaba por subverter o próprio corpo, ao instalar-se nos seus sistemas. Em consequência, o organismo claudica, o doente sente-se derrotado e perde o interesse e a esperança na sua família, no seu trabalho e, mais amplamente, no seu projecto existencial. Como etapa final, instala-se a apatia: nada faz sentido nem nada vale a pena. Como diria Agostinho de Hipona, fica-se sem memória, sem inteligência, sem vontade.

Durante a semana a que chamam Santa, os cristãos de todo o mundo escutam a Palavra mais detalhada e mais comovente de todo o ano litúrgico. Muitos sofrem na carne as penas abjectas da perseguição pela fé e a violação da sua mais profunda consciência mas, talvez por isso, ainda vivem mais intensamente estes dias. Pablo D’Ors , teólogo e escritor, cujo comentário me foi oferecido por um amigo, escreveu sobre as consequências da agonia do Cristo e o pecado dos que o condenaram injustamente: «Nada demonstra melhor o nível espiritual de uma pessoa do que a sua relação com a dor. Em crianças, rejeitamos qualquer dor e regemo-nos, única e exclusivamente, pelo princípio do prazer, que consideramos um direito. Quando adultos, aceitamos a dor, que é fruto do amor, ou seja, estamos dispostos ao sacrifício. Compreendemos que a dor tem os seus direitos e, contrariados ou reconciliados, pagamo-los religiosamente.»

O tratamento da problemática da felicidade está registado nas culturas desde tempos muito longínquos, provavelmente foi um tema central nas auroras e sistematização das culturas mais dominantes e não há razão para crer que, a partir de uma outra qualquer formulação, não tenha estado presente nos mais recônditos aglomerados humanos. Talvez a depressão tenha sido sempre a sua fiel companheira, o sinal dos limites à liberdade humana, mas é improvável que em tempos recuados tenha conseguido medrar no coração de tanta gente como acontece hoje, na afluência, na comodidade, nas vitórias da medicina, nas prestações sociais. Há um fundamento cultural para a doença mental que nenhum tipo de positivismo pode negar e o alastrar da depressão, e o seu incomensurável e absurdo sofrimento, é um sinal civilizacional da incivilidade dos tempos, exibindo a fragilidade das relações e dos valores, a confusão entre o otimismo e a esperança, a ausência de sentido para a vida que constitui o princípio da realidade e a base da maturidade humana. Para os cristãos, a Páscoa é um tempo de reconciliação e de coragem, um tempo da felicidade adulta que subsiste ao sofrimento, à doença, à pobreza, à perseguição, uma oportunidade para o compromisso fraterno no seguimento daquele que passou fazendo o bem: «tomou sobre si as nossas enfermidades e carregou os nossos sofrimentos», pois se a fragilidade e a dor são condição humana, encontram redenção no amor, na generosidade e na entrega. Votos de uma boa Páscoa.

Comentários
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  • MASQUEGRACINHA
    14 abr, 2017 TERRADOMEIO 17:38
    "Como será possível que o filme da nossa vida acabe bem num universo em que até os espíritos entusiásticos se podem dar conta facilmente do sofrimento humano, desde aquele que é inevitável àquele que é possível prevenir? Muitos de nós já têm resposta pronta para esta pergunta, ou sob a forma de uma fé religiosa inabalável, ou de um isolamento protector contra toda a espécie de pesar. Mas que propor aos outros, àqueles que não dispõem nem de um recurso nem de outro? (...) Este cenário inclui também uma atitude de combate, baseada na convicção de que uma parte da tragédia da humanidade pode ser diminuída e de que contribuir para essa diminuição é uma responsabilidade que devemos assumir." "Embora possa parecer ingénuo e utópico, especialmente depois de se ler o jornal da manhã ou se ouvirem as notícias da tarde, não há qualquer alternativa : é necessário acreditar que podemos contribuir para a solução do problema [melhoria do destino humano]." [cit. António Damásio, em "Ao Encontro de Espinosa"]
  • Maria Eduarda
    13 abr, 2017 Lisboa 22:40
    Em que incunábulo medieval terá Cristina Sá Carvalho ido buscar estas suas teorias do amor e do sofrimento?
  • Alexandre
    13 abr, 2017 Lisboa 08:42
    O texto de Cristina Sá Carvalho é um convite à mentalidade do homem medieval. Será a igreja católica portuguesa uma igreja feliz? As imagens de uma mulher a percorrer o santuário de Fátima de joelhos são imagens felizes? A mesma igreja faz alguma coisa para acabar com esses rituais de sofrimento? Quando uma instituição tão poderosa como a nossa igreja católica tem o poder de acabar com estas práticas de dor, mas simplesmente deixa-as existir (para arrecadar dinheiro com a publicidade), o resultado é a depressão.
  • Marco Visan
    12 abr, 2017 Lisboa 23:02
    O Marques Gracinha bem pode dar os significados que quiser dessa dor e sofrimento. No entanto, o que está explícito no texto de Cristina Sá Carvalho, é a dor como fruto do amor, algo mesmo medieval. Tão medieval que já passou de moda há muito tempo. O ser humano, hoje, quer ser feliz. Já chega desta dor e sofrimento transmitida por Cristina Sá Carvalho que, na verdade, conduz à depressão.
  • MASQUEGRACINHA
    12 abr, 2017 TERRADOMEIO 19:23
    Quanto ao sofrimento, há que distinguir entre o sofrimento inerente à própria condição humana de ser consciente - o sofrimento da certeza da nossa própria morte, e da morte dos que nos são queridos, que é em si mesmo inevitavelmente depressivo -, e o sofrimento provocado pelos seres humanos a outros seres humanos (e não só, mas resumindo a ideia). No que toca a este último, podemos fazer muita coisa - de facto, não estamos, nem devemos, estar cá pela dor e sofrimento, e é perfeitamente possível sermos muito mais felizes do que somos, quando nos libertarmos de falsos respeitos e inferioridades perante outros homens como nós, que nos usam e abusam para as suas taras de luxo e de domínio. Um taco de golfe custa quantos ordenados mínimos? Um diamante, uma pedra, um calhau, custa quantas vidas? Menos 1% no ilegal excedente alemão significaria quanto desafogo para a impagável dívida dos caloteiros sulistas? Os reinos dos céus, mesmo para quem neles acredita, há muito que deixaram de ser justificação para os infernos na terra. Já passou o tempo de acreditar em teorias de "crime e castigo", ou "desígnios insondáveis". Os carrascos das criancinhas famélicas e gaseadas têm nome e contas off-shore. Já nada, a não ser a ganância e a ânsia de poder, justifica a fome, a peste e a guerra. Mas a morte, que nos acompanhará muito tempo, talvez para sempre, será fonte irremediável de depressão, dor e sofrimento - para que continuaremos a buscar sentido, respostas, consolo.
  • Ângela Veloso
    12 abr, 2017 Lisboa 13:30
    Esta tese de estarmos cá pela dor e sofrimento já deixou de ser válida há muito tempo. Talvez a Cristina Sá Carvalho faça bom uso dos livros da Idade Média e de outros livros escritos no século XVI e XVII, onde ensinavam esse método às pessoas para se conservarem deprimentes. Eu não faço.
  • Marco Visan
    12 abr, 2017 Lisboa 09:50
    A Cristina Sá de Carvalho concebeu a ideia que o ser humano está destinado à dor e ao sofrimento. Eu pensava que o propósito do ser humano na terra era a felicidade. Infelizmente, aqui temos uma mentalidade ao nível da idade média. Os meus pêsames, Dona Cristina.
  • 11 abr, 2017 23:26
    Excelente artigo! Incisivo...a propósito da quadra, que não é uma época de coelhinhos...nem doutras imbecilidades publicitárias...Boa Páscoa....que quer dizer passagem.....passagem das sombras para a luz...da escuridão para o dia claro, soalheiro e primaveril..Os ateus, e mesmo muitos cristãos.........que fiquem com os coelhinhos...
  • Manuel D.Machado
    11 abr, 2017 Oeiras 19:07
    Sobre o artigo...somente dir-lhe-ei ....DEUS não tem lugar na politica dos safados"! Mais..." Jesus Cristo disse: O meu templo será declarado casa de oração para todos os Povos. Mas vocês transformaram-no em caverna de ladrões"! Isto é o que está acontecer e Fátima ! Um recinto cheio de vendilhões! Este Governo , composto de ATEUS.. quer lá saber do PaPa... . Esfrega as mãos.. porque vai ter receita do IVA!
  • João Galhardo
    11 abr, 2017 Lisboa 18:54
    Infelizmente, não partilho da posição de Marques Gracinha. O texto é quase todo um tratado católico, do mais banal e submisso que pode haver perante o sofrimento e a desgraça alheia. Sobre a dita «articulista», basta a olhar para a sua fotografia e perceber o que é: uma espécie de «beata», rezando o terço e votando nos partidos que seguem o caminho da depressão (CDS-PP ou PSD).