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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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​Adeus às armas

28 mar, 2017 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


A democracia pode definir-se de muitas maneiras mas sustenta-se em poucas opções de fundo, e o seu potencial como cenário pacífico e respeitoso da luta política parece estar a esboroar-se.

É uma amável e reconhecida «deuscidência» que a Igreja proclame Santos os pequenitos de Fátima na altura em que se celebra o centenário do seu encontro com Maria, e quando a Rússia, 28 anos depois da queda do muro de Berlim, está longe de se converter aos princípios da democracia, à equidade da lei, à liberdade de expressão e à capacidade de viver como uma sociedade regida por princípios e valores éticos universais.

Dez décadas depois, o Santuário de Fátima não é só o centro geográfico e nevrálgico da religiosidade popular portuguesa – desde tempos imemoriais, intensa, dramática e fortemente mariana e maternal – mas é um dos espaços mais interclassistas da nossa vida comum, acolhendo igualmente, e igualmente bem, todos os estratos económicos, sociais e culturais. Não será muito exagerado dizer que, em Portugal, toda a gente vai a Fátima e que toda a gente sente que aquele é um espaço e um lugar onde experimenta, pelo menos, um bem-estar, próximo da «cura» para muitos dos males modernos. Naturalmente, a fé é ali acolhida na sua diversidade e no ponto do caminho peregrino que cada pessoa faz na sua vida, acomodando práticas e ritos que podem surpreender ou preocupar alguns. Mas, vividos com tamanha simplicidade e uma tão grande honestidade, recebem a única resposta possível, espontânea, que só pode ser o respeito, quando não a admiração. Por outro lado, a mensagem de paz universal, de medicina contra o ódio, a disputa e a guerra, tornaram o fenómeno Fátima um altar universal, sempre mais forte e melhor compreendido quanto as definições de «paz» mais foram evoluindo na reflexão política, teológica e filosófica: do adeus às armas, para a centração no desenvolvimento dignificador de toda a pessoa e da pessoa toda e a busca da justiça.

Todas estas questões em torno de Fátima e, talvez, por causa de Fátima, parecem ganhar um fôlego novo ou, no mínimo, uma relevância e acuidade relevantes, quando celebramos 60 anos do Tratado de Roma. Se nem as imagens actualíssimas e duríssimas dos ataques a Mossul, ou das praias do belo Mediterrâneo dantescamente coalhadas de bebés, ou o rosto das meninas violadas pela guerra perpetrada pelo Daesh, e explicado pelo brilhante discurso de Amal Clooney na ONU, parecem ser suficientes para abanar o ocidente e fazê-lo escolher a paz, de que mais sinais necessitamos?

A democracia pode definir-se de muitas maneiras mas sustenta-se em poucas opções de fundo, e o seu potencial como cenário pacífico e respeitoso da luta política parece estar a esboroar-se. Não vale a pena, sequer, continuar a analisar o indigno espectáculo do contínuo e enlouquecido twittar de javardices incomensuráveis sobre uma inteira nação, pois o sintoma que é a vida numa realidade paralela, inventada, sem base real, já está claramente identificado. Mas é preciso trabalhar para garantir que os cidadãos têm à sua disposição os meios necessários para conter e reverter os danos causados por esse gigante vómito de dementes atrocidades. Do lado de cá do oceano, copos e pequenas à parte, que estranho destino é este que enfraquece a União e promove dos discursos mais jocosos, tacanhos e manipuladores, a que assistimos desde o fim da Segunda Grande Guerra?

Com a evolução da tecnologia, a desregulação da economia de mercado, a hiperpopularização e a hiperpreponderância de uma cultura espumosa e oca, vocacionada para o consumo e a alienação do consumidor, da fragilização das finalidades da educação e o esvaziamento ético da acção política e da governação em geral, «perdeu-se até a consciência do drama das famílias separadas, da pobreza e da miséria que aquela divisão provocou. Onde as gerações tinham a ambição de ver abatidos os sinais de inimizade forçada, agora se discute como excluir os “perigos” do nosso tempo, a partir da longa fila de mulheres, homens e crianças, em fuga da guerra e da pobreza, que pedem somente a possibilidade de um futuro para si e para seus entes queridos.»

Como referiu o Papa Francisco, já citado, recebendo os dignatários europeus na relevante efeméride europeia, é preciso pedir, descobrir, reinventar a lucidez que permita «centralidade do homem, solidariedade concreta, abertura ao mundo, busca da paz e do desenvolvimento, abertura ao futuro.» Quem reza em Fátima tem este ano muito que fazer.

Comentários
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  • Marco Visan
    29 mar, 2017 Lisboa 19:44
    Armas de Fátima, infelizmente o seu terço serve para rezar a uma boneca que representa uma santa e não à mãe de Jesus. Portanto, essa sua consagração é mais pagã que católica, se atendermos ao significado da Santa e do processo como esta foi resgatada pela Igreja Católica Portuguesa. Essa ideia que Jesus voltará à terra, é outra invenção, pois como Jesus disse aos seus carrascos, ele era filho do homem e um dia (esses seus carrascos) iriam ver o filho do homem ao lado de Deus. O que disse foi meramente simbólico, com poder de ser interpretado por gente sã que não confunde os ensinamentos. Lamentavelmente, «Armas de Fátima» e Cristina Sá Carvalho confundem tudo e lidam com o tema de Jesus com bastante obsessão e até estupidez.
  • ARMAS DE FÀTIMA
    29 mar, 2017 Tojal 13:58
    A primeira arma de Fátima é o terço. Arma para atingir a paz, paz na pessoa, e paz das armas e canhões. A segunda arma é a consagração ao Coração Imaculado de Maria. Esta consagração provoca a paz no mundo. Por fim o meu Imaculado Coração Triunfará. Quer dizer Jesus o Filho de Maria regressará à terra de forma triunfante para Sua glória e nossa libertação, mas também para a condenação de muitos ao suplicio eterno que a maioria nega. Em conclusão, Fátima está para o fim dos tempos, com o triunfo e retorno de Jesus à terra, da mesma forma que Santa Margarida Maria para o Rei de França, que por não dar ouvidos à Santa, a sua descendência vem a paga-las, 100 anos mais tarde, com a revolução Francesa. Portugal e o mundo com o desprezo pelas coisas de Deus tem-se comportado como outro rei de França, ou ainda pior. A partir do ano que vem cá estamos para ver.
  • Carlos Xavier
    29 mar, 2017 Lisboa 13:05
    Rui Bisonte, aqui censuram tudo o que não se identifica com a mensagem cristã politicamente correcta. Este texto é das coisas mais falsas ou politicamente correctas que já li sobre Fátima.
  • Snr. RUI BISONTE
    29 mar, 2017 Covilhã 11:34
    O meu comentário foi o possível, já que decidiram censurar o que tinha escrito. Talvez por ser demasiado realista e sério, questionasse a comédia em que teimam em transformar a religião pregada por Cristo.
  • Ângela Veloso
    29 mar, 2017 Lisboa 09:30
    «...ou das praias do belo Mediterrâneo dantescamente coalhadas de bebés». O problema do seu discurso é o exagero e quando nos relembra Fátima como altar do Mundo e da paz, então a mensagem só pode ser o resultado de pura e simples hipocrisia.
  • António Costa
    29 mar, 2017 Cacém 07:55
    O seu comentário sobre a Rússia foi "muito infeliz". Com toda a "injustiça", "atropelos às liberdades", Mafias super organizadas, o que quiser, a Rússia voltou a "aproximar-se" de Deus. Nós no Ocidente estamos a nega-lo e a afastar-mo-nos cada vez mais. As pessoas não entendem que a Tolerância tem de SER ENSINADA! É assim tão difícil? As pessoas estão a ser ensinadas a ser intolerantes! Ensinadas a atirar pedras ao outro! A cumprir regras, pelas regras, sem qualquer compaixão! Será que não entendem que um muçulmano, mesmo que queira, com todas as suas forças, não pode conseguir uma sociedade Democrática? As Regras da Religião Muçulmana são a "Constituição Base" de um sistema "autoritário", de uma "Ditadura"! São Leis que visam apenas impedir a "livre escolha" que existe em Democracia! A Sociedade Ocidental esta a transformar os seus próprios filhos em "janízaros"! E não entra! Fátima tinha e tem 1000 vezes razão!
  • MASQUEGRACINHA
    28 mar, 2017 TERRADOMEIO 20:23
    Gostei muito do artigo, embora não partilhe a fé da articulista, nem Fátima tenha qualquer significado particular para mim (como, aliás, não tem para muitos insuspeitos católicos). Nem questões de fé são discutíveis, nem o artigo directamente as versa - ao que me parece, mesmo Fátima nele surge como moldura de um quadro, esse sim, de urgente e universal importância. Realço (o que me parece ser) a suave ironia do primeiro parágrafo, sobre a "não conversão" da Rússia, cem anos decorridos após as aparições e respectivas mensagens; e o "apelo às armas" da última frase, no contexto do que antes ficou escrito e descrito: de facto, quem reza em Fátima tem este ano muito que fazer. Tal como quem não reza em Fátima, aliás.
  • ALETO
    28 mar, 2017 Lisboa 20:18
    Temos de lembrar à Dona Cristina Sá de Carvalho que Fátima já não é aquele belo lugar que existia antes do santuário. Porque não falar nos devotos que vão lá entregar oitenta a cem euros nas suas contribuições anuais, só porque (como disse uma), essa era a quantia que lhe levava o médico? O cofre ficou tão cheio que, certa vez, foi visto um dos «irmãos» a encher um carro de rodas com moedas e notas (tudo para os cofres da Igreja). E porque não falar nos museus de cera, onde as camas dos pastorinhos estão cheias de moedas? Seria esta a imagem que Jesus Cristo queria para os cristãos? Uma terra dedicada ao culto do dinheiro? A Dona Cristina Sá Carvalho pode procurar outro santuário neste país que ofereça a paz e a esperança aos portugueses, mas não em Fátima.
  • António Costa
    28 mar, 2017 Cacém 17:53
    "...a Rússia, 28 anos depois da queda do muro de Berlim, está longe de se converter aos princípios da democracia...." e essa sociedade maravilhosa, "cor-de-rosa" e democrática é esta onde vivemos? Onde se "degolam" os padres dentro das igrejas? Se atropelam e matam aqueles que "nos" recebem? Sabe, por exemplo que um dos autores do massacre de cristãos, na Universidade de Garissa, no Quénia, tinha formação superior em Direito e um "futuro brilhante" à sua frente? Já lhe ocorreu, que este "cavalheiro" não teria, por acaso, outros "valores éticos universais", muito, muito Diferentes dos nossos?
  • Rui Bisonte
    28 mar, 2017 Parede 16:05
    sra. D. Lavínia, direi mesmo que Galhardo comentou com galhardia.