28 mar, 2017
É uma amável e reconhecida «deuscidência» que a Igreja proclame Santos os pequenitos de Fátima na altura em que se celebra o centenário do seu encontro com Maria, e quando a Rússia, 28 anos depois da queda do muro de Berlim, está longe de se converter aos princípios da democracia, à equidade da lei, à liberdade de expressão e à capacidade de viver como uma sociedade regida por princípios e valores éticos universais.
Dez décadas depois, o Santuário de Fátima não é só o centro geográfico e nevrálgico da religiosidade popular portuguesa – desde tempos imemoriais, intensa, dramática e fortemente mariana e maternal – mas é um dos espaços mais interclassistas da nossa vida comum, acolhendo igualmente, e igualmente bem, todos os estratos económicos, sociais e culturais. Não será muito exagerado dizer que, em Portugal, toda a gente vai a Fátima e que toda a gente sente que aquele é um espaço e um lugar onde experimenta, pelo menos, um bem-estar, próximo da «cura» para muitos dos males modernos. Naturalmente, a fé é ali acolhida na sua diversidade e no ponto do caminho peregrino que cada pessoa faz na sua vida, acomodando práticas e ritos que podem surpreender ou preocupar alguns. Mas, vividos com tamanha simplicidade e uma tão grande honestidade, recebem a única resposta possível, espontânea, que só pode ser o respeito, quando não a admiração. Por outro lado, a mensagem de paz universal, de medicina contra o ódio, a disputa e a guerra, tornaram o fenómeno Fátima um altar universal, sempre mais forte e melhor compreendido quanto as definições de «paz» mais foram evoluindo na reflexão política, teológica e filosófica: do adeus às armas, para a centração no desenvolvimento dignificador de toda a pessoa e da pessoa toda e a busca da justiça.
Todas estas questões em torno de Fátima e, talvez, por causa de Fátima, parecem ganhar um fôlego novo ou, no mínimo, uma relevância e acuidade relevantes, quando celebramos 60 anos do Tratado de Roma. Se nem as imagens actualíssimas e duríssimas dos ataques a Mossul, ou das praias do belo Mediterrâneo dantescamente coalhadas de bebés, ou o rosto das meninas violadas pela guerra perpetrada pelo Daesh, e explicado pelo brilhante discurso de Amal Clooney na ONU, parecem ser suficientes para abanar o ocidente e fazê-lo escolher a paz, de que mais sinais necessitamos?
A democracia pode definir-se de muitas maneiras mas sustenta-se em poucas opções de fundo, e o seu potencial como cenário pacífico e respeitoso da luta política parece estar a esboroar-se. Não vale a pena, sequer, continuar a analisar o indigno espectáculo do contínuo e enlouquecido twittar de javardices incomensuráveis sobre uma inteira nação, pois o sintoma que é a vida numa realidade paralela, inventada, sem base real, já está claramente identificado. Mas é preciso trabalhar para garantir que os cidadãos têm à sua disposição os meios necessários para conter e reverter os danos causados por esse gigante vómito de dementes atrocidades. Do lado de cá do oceano, copos e pequenas à parte, que estranho destino é este que enfraquece a União e promove dos discursos mais jocosos, tacanhos e manipuladores, a que assistimos desde o fim da Segunda Grande Guerra?
Com a evolução da tecnologia, a desregulação da economia de mercado, a hiperpopularização e a hiperpreponderância de uma cultura espumosa e oca, vocacionada para o consumo e a alienação do consumidor, da fragilização das finalidades da educação e o esvaziamento ético da acção política e da governação em geral, «perdeu-se até a consciência do drama das famílias separadas, da pobreza e da miséria que aquela divisão provocou. Onde as gerações tinham a ambição de ver abatidos os sinais de inimizade forçada, agora se discute como excluir os “perigos” do nosso tempo, a partir da longa fila de mulheres, homens e crianças, em fuga da guerra e da pobreza, que pedem somente a possibilidade de um futuro para si e para seus entes queridos.»
Como referiu o Papa Francisco, já citado, recebendo os dignatários europeus na relevante efeméride europeia, é preciso pedir, descobrir, reinventar a lucidez que permita «centralidade do homem, solidariedade concreta, abertura ao mundo, busca da paz e do desenvolvimento, abertura ao futuro.» Quem reza em Fátima tem este ano muito que fazer.