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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Marx, Kerensky e Lenine

08 mar, 2017 • Opinião de José Miguel Sardica


Agrária, muito pobre e socialmente desigual, a Rússia do Czar estava em pré-revolução desde o «Domingo Sangrento» de 1905.

Acontecem este ano três efemérides que dizem respeito à história da Rússia, mas que tiveram amplíssima repercussão internacional. Há um século exacto, em finais de Fevereiro de 1917 (início de Março no calendário ocidental), teve lugar a 1.º Revolução Russa, menos conhecida, porque mais episódica e ultrapassada, em finais de Outubro (novembro no calendário ocidental), pela 2.ª Revolução Russa, que levou Lenine e os bolcheviques ao poder em Petrogrado e que, depois de dez anos de guerra civil, algum reformismo económico e muita purga política, legou à posteridade a nova URSS de Estaline. A terceira efeméride é a dos 150 anos da publicação (em 1867) da obra de Karl Marx «O Capital», onde o filósofo alemão elaborou a sua teoria da revolução socialista, destinada a expropriar a burguesia, a destronar o capitalismo e a criar, supostamente, a sociedade sem classes e sem Estado, ou seja, a verdadeira democracia.

A linha que associa estes três acontecimentos históricos parece contínua: o marxismo forneceu a ideologia, a revolução de Fevereiro encetou o processo e a de Outubro teria completado a obra. Na verdade, há muito mais a separar Marx, Kerensky e Lenine do que a uni-los. Sobretudo, e nos extremos, poucas expressões existem tão equívocas quanto o rótulo “marxismo-leninismo”. Karl Marx jamais imaginou ou escreveu que a “sua” revolução aconteceria na Rússia, um país obviamente impreparado para o tipo de transformação de poder (e não de tomada ou subversão do mesmo) por si teorizada. Era no SPD alemão ou na classe operária britânica que o chamado “socialismo científico” depositava esperanças. E quanto à futura URSS, é crível que Marx não a tivesse reconhecido como obra sua, se acaso fosse vivo nos anos 1930.

O que se passou na Rússia de 1917 não foi, portanto, a realização histórica da profecia marxista, mas um conjunto de acidentes e sobressaltos ligado à conjuntura do país e ao problema europeu da I Guerra Mundial.

Agrária, muito pobre e socialmente desigual, a Rússia do Czar estava em pré-revolução desde o «Domingo Sangrento» de 1905. A concessão da «Duma» nunca passou de um verniz parlamentar sobre uma real autocracia. Com a I Guerra Mundial, o nível de vida piorou, as fomes multiplicaram-se e o exército entrou em decomposição, num caldo explosivo em que as baixas em combate, as deserções e, na retaguarda, as greves e manifestações de descontentamento fizeram colapsar a ordem pública.

Em Fevereiro de 1917, ao estilo parisiense de 1789, a multidão dos civis e dos soldados que se lhes juntaram forçou a abdicação de Nicolau II e a criação de um governo provisório, de tipo tentativamente burguês, constitucional, liberal (no máximo social-democrata), e ocidental, liderado por Georgy Lvov. Seria, porém, Alexander Kerensky, ministro da Justiça, da Guerra e, a partir de Julho, Primeiro-ministro, o rosto dessa nova Rússia. Aliado da França e da Grã-Bretanha no quadro da I Guerra, o novo governo russo quis manter a beligerância, de olho numa futura paz política, ao mesmo tempo que reformava o país. Mas a guerra era impopularíssima e a Rússia estava no caos.

O centro-esquerda menchevique não tinha onde se firmar. Em Outubro, inaugurando a escola do golpe de Estado cirúrgico, levado a cabo pela vanguarda revolucionária de uma vasta teia de células de sovietes, Lenine e os bolcheviques tomaram o poder, prometendo “terra, pão e paz” (imediata). Outubro não foi, contudo, o aprofundamento de Fevereiro. Foi a sua subversão e o início de qualquer coisa muito diferente. Entre Nicolau II e Lenine, a revolução de Fevereiro abriu assim o único curtíssimo período, de escassos meses, em que o gigante eslavo conheceu, ou pôde imaginar o que seria, a liberdade.

Comentários
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  • Vasco
    08 mar, 2017 Évora 23:45
    Pelos vistos quase sempre a história esbarra nos mesmos resultados, temos algo que está mal e errado mas aparecem de imediato os oportunistas que estiveram na retaguarda em silêncio ou em pequenas acções de revolta prometendo o paraíso e que conseguem habilmente sobrepor-se a qualquer um e de um momento para o outro todo um país cai num abismo pior que o anterior; em 1975 estivemos à beira desse abismo mas mesmo assim ainda existem hoje raízes tão malignas como as de um cancro que tentam infiltrar-se na sociedade com o seu ar angélico para cativar os incautos.
  • MASQUEGRACINHA
    08 mar, 2017 TERRADOMEIO 19:15
    Agora, fico à espera da continuação desta história (muiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiito resumida, mas bem contada): e o que aconteceu ao centro-esquerda menchevique? Onde acabou por firmar-se, com que políticas, com que resultados? Vá lá, não vale deixar a história a meio.
  • António Costa
    08 mar, 2017 Cacém 15:34
    A "dinâmica revolucionária" acaba quando o "nosso camarada" Napoleão se faz coroar imperador pelo Papa. A "admiração" da Igreja da época pelos valores da Revolução Francesa, penso que é bem conhecida de todos. O episódio que referi, penso que demonstra o "pragmatismo" de duas figuras públicas muito importantes da época. A "revolução dos cravos" fez-se por questões "laborais". O antigo regime, na sequência da Guerra Colonial, começou a dar cada vez mais "benesses" aos oficiais milicianos. Isso desagradou profundamente aos oficiais do quadro. Em 1958, só com o apoio em força dos militares o regime tinha impedido a enorme revolta popular, de norte a sul do país. Em Abril de 1974, sem o apoio dos militares, o regime caiu como um castelo de cartas. Um "mundo melhor" só existe com Ideias Diferentes, de pessoas diferentes. Os problemas nesta "velho planeta Terra" mudam, repetem-se e novos aparecem. São necessárias soluções Diferentes para problemas Diferentes.
  • Alexandre
    08 mar, 2017 Lisboa 13:15
    Liberdade? Será só isso o que procura numa revolução? Ou antes o pão, a justiça e o trabalho para aqueles que não têm? Antes de censurar mais um comentário que não se enquadra no seu gosto, veja se entende melhor o processo das revoluções. Porque se fez a revolução francesa? Porque se fez a revolução dos cravos? Porque se fez a revolução bolivariana? Foi só pela liberdade?
  • António Costa
    08 mar, 2017 Cacém 11:37
    Sim, é um artigo interessante. As sociedades tem sempre problemas, mas existem alturas em que se "passa das marcas". Quando nestas épocas não existem Ideias Diferentes, as revoltas aparecem e volta tudo à mesma: muda-se de faraó ou de rei. Quando existem Ideias "diferentes" a História é muito diferente, pois é a própria instituição que entra em colapso. As revoluções russa ou a francesa, referidas no texto, são exemplos disso. E isto é muito, muito Importante! As Ideias ou as "Teorias Politicas" não são "qualquer coisa". São decisivas! "Napoleões pragmáticos" há muitos, mas são as Ideias que vão ser postas em prática, e as suas Consequências que vão decidir o Futuro! Quais os VALORES que a sociedade futura vai defender! Para o BEM ou para o MAL!