08 mar, 2017
Acontecem este ano três efemérides que dizem respeito à história da Rússia, mas que tiveram amplíssima repercussão internacional. Há um século exacto, em finais de Fevereiro de 1917 (início de Março no calendário ocidental), teve lugar a 1.º Revolução Russa, menos conhecida, porque mais episódica e ultrapassada, em finais de Outubro (novembro no calendário ocidental), pela 2.ª Revolução Russa, que levou Lenine e os bolcheviques ao poder em Petrogrado e que, depois de dez anos de guerra civil, algum reformismo económico e muita purga política, legou à posteridade a nova URSS de Estaline. A terceira efeméride é a dos 150 anos da publicação (em 1867) da obra de Karl Marx «O Capital», onde o filósofo alemão elaborou a sua teoria da revolução socialista, destinada a expropriar a burguesia, a destronar o capitalismo e a criar, supostamente, a sociedade sem classes e sem Estado, ou seja, a verdadeira democracia.
A linha que associa estes três acontecimentos históricos parece contínua: o marxismo forneceu a ideologia, a revolução de Fevereiro encetou o processo e a de Outubro teria completado a obra. Na verdade, há muito mais a separar Marx, Kerensky e Lenine do que a uni-los. Sobretudo, e nos extremos, poucas expressões existem tão equívocas quanto o rótulo “marxismo-leninismo”. Karl Marx jamais imaginou ou escreveu que a “sua” revolução aconteceria na Rússia, um país obviamente impreparado para o tipo de transformação de poder (e não de tomada ou subversão do mesmo) por si teorizada. Era no SPD alemão ou na classe operária britânica que o chamado “socialismo científico” depositava esperanças. E quanto à futura URSS, é crível que Marx não a tivesse reconhecido como obra sua, se acaso fosse vivo nos anos 1930.
O que se passou na Rússia de 1917 não foi, portanto, a realização histórica da profecia marxista, mas um conjunto de acidentes e sobressaltos ligado à conjuntura do país e ao problema europeu da I Guerra Mundial.
Agrária, muito pobre e socialmente desigual, a Rússia do Czar estava em pré-revolução desde o «Domingo Sangrento» de 1905. A concessão da «Duma» nunca passou de um verniz parlamentar sobre uma real autocracia. Com a I Guerra Mundial, o nível de vida piorou, as fomes multiplicaram-se e o exército entrou em decomposição, num caldo explosivo em que as baixas em combate, as deserções e, na retaguarda, as greves e manifestações de descontentamento fizeram colapsar a ordem pública.
Em Fevereiro de 1917, ao estilo parisiense de 1789, a multidão dos civis e dos soldados que se lhes juntaram forçou a abdicação de Nicolau II e a criação de um governo provisório, de tipo tentativamente burguês, constitucional, liberal (no máximo social-democrata), e ocidental, liderado por Georgy Lvov. Seria, porém, Alexander Kerensky, ministro da Justiça, da Guerra e, a partir de Julho, Primeiro-ministro, o rosto dessa nova Rússia. Aliado da França e da Grã-Bretanha no quadro da I Guerra, o novo governo russo quis manter a beligerância, de olho numa futura paz política, ao mesmo tempo que reformava o país. Mas a guerra era impopularíssima e a Rússia estava no caos.
O centro-esquerda menchevique não tinha onde se firmar. Em Outubro, inaugurando a escola do golpe de Estado cirúrgico, levado a cabo pela vanguarda revolucionária de uma vasta teia de células de sovietes, Lenine e os bolcheviques tomaram o poder, prometendo “terra, pão e paz” (imediata). Outubro não foi, contudo, o aprofundamento de Fevereiro. Foi a sua subversão e o início de qualquer coisa muito diferente. Entre Nicolau II e Lenine, a revolução de Fevereiro abriu assim o único curtíssimo período, de escassos meses, em que o gigante eslavo conheceu, ou pôde imaginar o que seria, a liberdade.